5.3.22

A caixa de Pandora de Vladimir Putin

 


«Os últimos dois anos têm sido tempos excecionais, de grandes preocupações a nível mundial. A verdade é que não estávamos preparados para enfrentar reptos desta dimensão e que vieram juntar-se ao problema muito complexo - e vital - das alterações climáticas.

Primeiro, foi a pandemia, que continua a ser um desafio enorme, sobretudo para os países com menos recursos e sistemas de saúde pública extremamente frágeis.

Com este pano de fundo ainda a fazer parte do nosso horizonte, surgiu agora um segundo fator de enorme instabilidade e que, tal como a covid-19, deverá contribuir para a reconfiguração do futuro das nossas sociedades e das relações internacionais. Este fator tem como ponto de origem a decisão inexplicável, anacrónica e ilegal de Vladimir Putin de declarar guerra ao povo da Ucrânia.

O ditador russo abriu uma caixa de Pandora. É preciso ter consciência disso. E, neste momento, até a esperança parece ter saído da caixa e andar à deriva. O próprio ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, que agora se comporta de modo visível como um lacaio do seu mestre, veio alimentar o sentimento coletivo de ansiedade. Na quarta-feira, ao falar das sanções que foram impostas ao seu país, o ministro afirmou que a resposta poderá ser uma terceira guerra mundial. E sublinhou que seria "uma guerra nuclear devastadora".

Muitos pensarão que isto é só conversa, para fazer subir a parada, ou seja, para conseguirem destruir a Ucrânia e guardar os escombros, pressionar o Ocidente, ganhar peso estratégico e evitar uma nova vaga de sanções.

Por mim, sou dos que levam estas bravatas muito a sério. As medidas tomadas contra Putin e os círculos que sustentam o seu poder são extraordinariamente abrangentes, próximas de uma declaração de hostilidades. O impacto nas áreas da economia, da finança e da política interna será enorme. Perante isso, a resposta do Kremlin pode ser económica, para além das proibições de uso do espaço aéreo, do trânsito de mercadorias vindas da China, de vistos, etc. Mas receio que Putin não considere essas retaliações suficientes. Poderá querer mostrar que a Rússia não joga baixinho, que não é nem o Irão nem a Venezuela.

Como já aqui o escrevi, chegámos a um ponto de viragem muito perigoso. A única solução razoável passaria por um esforço diplomático de bons ofícios - no entendimento que seria necessário encontrar uma solução que garantisse a independência da Ucrânia, mas aceitando igualmente que está em jogo algo muito maior do que essa questão. A ONU e o seu secretário-geral deveriam ser os agentes principais dessa iniciativa. Faz parte das suas atribuições e devem ousar. Mas, não vejo hipótese, Putin não aceitaria uma mediação desse tipo. Para ele, a ONU é apenas um secretariado, uma estrutura ao serviço dos Estados, mas sem equiparação e abaixo deles. E Guterres é agora apresentado em Moscovo como um agente dos americanos.

A mediação teria de caber a um Estado aceite por todas as partes. Se a questão fosse apenas entre a Rússia e a Ucrânia, penso que a possibilidade de a China poder desempenhar esse papel não deveria ser descartada. Mesmo tendo em conta que a retórica chinesa antiamericana se tem agravado nos últimos dois ou três dias. Hoje, perante a complexidade da crise, seria preferível que a mediação fosse feita por um tandem, ou mesmo um triunvirato, de países. Por exemplo, a China, a França e um outro país, que reunisse a confiança dos europeus e dos americanos, mas independente da NATO e exterior à cena europeia. Qual poderia ser?

Dito isto, queria que ficasse claro que não tenho muita fé na possibilidade de uma mediação. Preferiria que se apostasse num golpe palaciano. Aí, sim, poderá estar a solução. Mas, oficialmente, há que insistir na via diplomática. A encruzilhada em que estamos é bem clara: ou há diplomacia ou haverá uma forte possibilidade de confrontação em larga escala, sofrimento e caos. Cabe a cada um responsabilizar-se pela sua escolha e, no fim, pagar a conta, a começar por Vladimir Putin.»

Conselheiro em segurança internacional. Ex-secretário-geral adjunto da ONU
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