«A rapidez com que os países europeus, mais do que os EUA, mudaram de posição sobre sanções, é notável. Na quarta-feira, o “New York Times” relatava como a Itália queria exceções para bens de luxo e indústria ferroviária, a Bélgica para os diamantes belgas, a Áustria e a Alemanha para a energia.
Dos nove países que se opuseram a sanções que incluíssem a importação de gás natural estavam os sete que mais dependem da Rússia nessa área. Ela é o principal fornecedor de petróleo e gás natural da União Europeia, e encontrar abastecimentos alternativos não será fácil. Com os preços da energia já em alta, todos queriam evitar mais perturbação. Fora da UE, a BP tinha 20% da petrolífera russa, de onde saiu agora.
As sanções bancárias eram temerosas, porque afetarão o Ocidente. A expulsão SWIFT estava fora da mesa, porque põe em causa os pagamentos aos países com mais relações comerciais com a Rússia. Mesmo o controlo dos bens dos oligarcas era muito tímido. “Londongrado”, o termo depreciativo usado nos últimos 20 anos nos corredores do Departamento de Estado dos EUA para descrever a capital do Reino Unido, é a cidade onde os oligarcas fazem prosperar o mercado imobiliário e financeiro. O seu papel no financiamento dos conservadores está bem documentado.
Em 72 horas, tudo mudou. À medida que a invasão se desenrolava, e a batalha mediática e nas redes sociais (onde a Rússia não está a conseguir fazer render investimentos de anos) foi ganhando de forma avassaladora a opinião pública europeia, os países mais reticentes começaram a deixar cair as suas objeções. A União Europeia, os Estados Unidos, o Reino Unido e o Canadá acabaram por acordar, na noite de sábado, o cancelamento do acesso de bancos russos “selecionados” ao sistema SWIFT (um instrumento de seguro financeiro, permitindo transações entre bancos quase instantâneas). A Rússia tem o seu próprio sistema, assim como a China. Mas não chega.
Acima de tudo, veio uma carta que não estava em cima da mesa, mas pode ser a de maior efeito: limitar o poder do banco central russo para usar as reservas acumuladas no estrangeiro – mais de metade ficará bloqueada. Com isso, pretende-se limitar a capacidade do banco central usar as reservas cambiais do país para suster o rublo. Se for eficaz, esta medida pode levar à queda livre da moeda russa, com o consequente aumento da inflação e do custo de vida no país, à paralisação do investimento e capacidade de financiamento do esforço de guerra. As empresas russas de importação-exportação que negoceiam em dólares serão provavelmente afetadas. É importante, no entanto, dizer que a Rússia acumulou reservas de divisas nos últimos anos e que a medida também terá forte impacto em empresas e bancos ocidentais.
Ontem, vieram mais medidas da União Europeia. Canais de desinformação como o Russia Today e o Sputnik foram banidos (estou curioso por ouvir a opinião dos que defenderam que medidas de controlo de centrais de desinformação, muitas delas financiadas pelos russos, eram formas de censura), o espaço aéreo foi banido aos russos e a caça ao oligarca ganhou alguma consistência, para tentar corroer o poder político e económico em torno de Putin. Neste último, sabendo o que a casa gasta, não depositaria demasiadas expectativas.
Mas o mais importante, pelo seu valor histórico, é o financiamento direto de material militar ofensivo para a Ucrânia. Deixou de ser o apoio que já estava a ser dado por alguns Estados, para, pela primeira vez, ser uma política coordenada e em bloco da União Europeia, o que não pode deixar de ser visto como envolvimento direto no conflito. “Caiu um muro”, disse Joseph Borrell, chefe da diplomacia europeia. No que toca ao apoio militar, só me preocupa o apelo à participação de cidadãos civis europeus na guerra da Ucrânia, que a Dinamarca apoiou. Compreendo o ímpeto de solidariedade, mas queremos mesmo um campo de treino e combate para o nascimento e crescimento de grupos políticos paramilitares violentos? É importante recordar algumas coisas muito pouco recomendáveis que nasceram e cresceram na guerra da Bósnia ou, muito antes disso, no Afeganistão.
Num fim de semana, a Alemanha levou a cabo a maior alteração de política externa desde 1991 (para não dizer desde a II Guerra). A sovina Alemanha passará a ter 2% do PIB em despesa para a defesa, ao qual acresce um fundo especial de cem mil milhões para modernização das suas forças. Só este fundo é maior do que o orçamento total de defesa russo. E, claro, com a declaração de morte do Nord Stream 2, prepara-se para uma maior independência em relação ao fornecimento de energia russo.
Este fim de semana, assistimos a um corte com o passado. Teremos de esperar para perceber como se vão posicionando a China e a Índia (não há nada mais importante para o nosso futuro), mas é certo que a interdependência económica entre grandes potências será um pouco mais reduzida. Isto pode ser um passo atrás numa globalização que dependeu do fim dos blocos políticos e militares. Sem peso económico e político, interessa à Rússia que o poderio nuclear seja o que conta. É o que tem e por isso usou essa ameaça como resposta às sanções enquanto as coisas lhe correm bem pior do que esperava no terreno.
E a Europa responde à ameaça militar. Para além do aumento do investimento militar alemão, as historicamente neutrais Suécia e Finlândia dão sinais de querer aderir à NATO. Tudo obra de Putin. Certo é que a Europa irá aumentar exponencialmente a sua despesa em defesa, o que corresponderá a uma mudança de prioridades que não deixará de ter um pesado preço social e económico. Por fim, não vejo que espaço fica, com a crise energética que nos espera, para responder à emergência climática.
O mundo vai mudar. A Europa também. Em muitas coisas não será para melhor. Os erros vêm de antes. Agora, são quase só inevitabilidades.»
.
0 comments:
Enviar um comentário