«Aconteça o que acontecer quando nos aproximarmos do fim da primeira semana do conflito, o argumento imperial para a invasão da Ucrânia chocou contra o mundo. Fosse esse argumento a putativa ameaça constituída pela Ucrânia, fosse a imaginada “desnazificação”, o discurso de Putin desvanece-se perante as evidências imediatas da dor provocada, seja nas cidades bombardeadas, seja na população civil em fuga, é a guerra. E, perante a perceção da inviabilidade do projeto dessa Grande Rússia, descobre-se inevitavelmente que esta guerra não tem paz. A responsabilidade pela guerra não pode, por isso, ser reduzida a um estratagema, a uma ambição, a uma manobra: a guerra é crime e tem um mandante.
O que estes dias demonstraram, em todo o caso, é que a Rússia será derrotada, por quatro razões inescapáveis. Em primeiro lugar, mesmo que venha a ser capaz de derrubar a resistência militar, o que ainda está por provar, não tem meios que lhe permitam ocupar o país, caminhando por isso para um abismo político: não conseguirá ficar e também não poderá sair sem ser perseguida pelo fracasso. Em segundo lugar, e isso não é uma pequena diferença em relação à bipolaridade protagonizada no passado pela URSS, não mobiliza uma ideologia organizadora, a não ser o cru nacionalismo imperial, que só é exibido para efeitos internos e tem como efeito repelir os outros povos. Em terceiro lugar, apesar das suas reservas colossais, não tem capacidade económica para se afirmar como uma potência mundial ao longo do tempo. Em quarto lugar, o seu sistema de alianças baseia-se na relação com um poder mais forte, a China e, logo, dependerá dela. Por isso, Putin não está só a lançar uma nova Guerra Fria, está a ajudar os seus inimigos a fabricarem um tempo novo, em que o que antes era impensável se pode agora transformar em realidade.
Era impensável, nos tempos recentes, uma invasão para ocupar um país europeu com o qual havia relações diplomáticas, o que significa que a sua soberania era reconhecida. Na verdade, esse procedimento foi banalizado noutras partes do mundo e tornou-se mesmo o modo de enunciado dos poderes imperiais, mas o único conflito armado de grandes proporções no nosso continente no pós-Segunda Guerra Mundial ocorreu na Jugoslávia e por via de uma guerra civil, por certo instrumentalizada pela Alemanha e pelos EUA, que atuavam por interpostos exércitos e milícias, mas não por ocupação militar de um exército estrangeiro.
Era impensável a Nato reforçar o seu contingente europeu, anulando de facto o pacto de 1997 estabelecido com a Rússia na Cimeira de Paris, que se comprometia a congelar as suas forças nos países de Leste recém integrados. Era impensável que a Nato pudesse vir a controlar toda a fronteira oeste da Rússia, o que agora poderá ficar mais próximo de conseguir. Esta mudança da geografia política e militar é precisamente o que Putin tinha prometido evitar e vencer.
Era impensável, e talvez ainda mais grave do que os jogos militares, que uma potência pudesse confiscar ativos do banco central da outra, sem ser no quadro de uma declaração de guerra total. Que Washington possa também engatilhar o sistema de pagamentos interbancários, o Swift, transformando-o numa bomba económica com a complacência europeia, que só lhe resistiu dois dias (porventura os governos europeus se lembrariam de Trump usar contra eles a ameaça de lhes bloquear o uso do Swift em 2018, não foi há tanto tempo), seria também uma normalização há pouco impensável.
Era impensável que a participação nos vários tipos de provas desportivas internacionais fosse proibida de modo extensivo a um país, mesmo num cenário de guerra (não eram as Olimpíadas gregas as provas que superavam as guerras?). Por certo, já houve boicotes mútuos, como nos Jogos de Moscovo, 1980, e nos de Los Angeles, 1984, curiosamente o primeiro para punir a Rússia pela invasão do Afeganistão, o segundo como retaliação. Mas não me lembro de a URSS ter sido impedida de disputar jogos pela invasão da Hungria em 1956 ou da Checoslováquia em 1968, ou de os EUA terem sido alvo de proibições que afastassem os seus atletas do desporto mundial pela sua posterior invasão do mesmo Afeganistão em 2001, ou depois do Iraque em 2003, ou, antes, do Vietname, em 1965. E agora esse procedimento está a banalizar-se como um instrumento de conflito, sendo pela primeira vez usado pelas próprias autoridades desportivas, precisamente quem o devia condenar.
Na escalada militar, no poder financeiro e no poder desportivo, aquilo a que assistimos é a um início da divisão do mundo em duas esferas incomunicáveis. Isso provoca dois paradoxos. O primeiro é que a nossa era é a da comunicação, pelo que o muro que separe as duas esferas tem de ser guarnecido por um sofisticado arame farpado digital, económico, financeiro, de viagens e de outros contactos. Para isto funcionar, terá de ser reduzido o comércio mundial a uma obediência e teremos de voltar a assinar declarações à entrada dos EUA ou da Rússia em que juraremos não ter tido pensamentos desviantes ou suspeitos. O segundo paradoxo é que esta separação só funciona se impedir a intermediação. Ora, como Washington não pode reconhecer à China a supremacia de um lugar de negociação entre ambas as esferas, exigirá que as pontes sejam queimadas.
Em cinco dias já tivemos uma ofensiva imperial para destruir um país e massacrar a sua população, uma inflação militarizante na Europa, uma razia financeira com a confiscação de parte do tesouro de uma potência, o bloqueio do sistema bancário mundial e ameaças contra o futuro do desporto. Até ao fim da semana verificaremos que isto mal começou.»
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