7.7.22

“Pouco fita a Europa, a não ser mortos”



 

«Foram pelo menos 37 mortos, embora algumas organizações de direitos humanos falem já de 45. São as vítimas do massacre de Melilla do passado 24 de junho, dia de São João. Morreram asfixiados ou esmagados entre os muros e as barras da fronteira, morreram depois de cair da cerca que separa o território marroquino do europeu, naquele enclave espanhol. Morreram depois de agonizar durante horas ao sol, sob o olhar da polícia, sem qualquer assistência. “Era tudo sangue, tudo sangue”, disse ao El Pais um dos trabalhadores chamados para limpar o cenário depois da chacina.

Nesse dia, cerca de 2 mil pessoas aproximaram-se do perímetro da fronteira para tentarem alcançar a Europa. 133 conseguiram, cerca de mil estão detidas, mais de 300 foram hospitalizadas depois do tratamento cruel e desumano das autoridades, que não lhes prestaram qualquer socorro, como era seu dever. Os mortos foram enterrados sem autópsias, sem identificação, sem informar as famílias - garantindo assim a impossibilidade de uma investigação séria sobre o que se passou.

Na sequência da tragédia, Pedro Sanchez, chefe do Governo espanhol liderado pelos socialistas, felicitou o trabalho da polícia marroquina. Foi um problema “bem resolvido”, declarou. As afirmações, somadas ao desprezo pelos direitos humanos por parte das polícias dos dois países, fizeram escândalo. Em março, Sanchez já tinha tomado uma decisão chocante, ao apoiar as pretensões do rei de Marrocos relativamente ao Saara Ociental, antiga colónia espanhola ocupada há décadas por Marrocos, que ali exerce violência e repressão política quotidiana contra a resistência Saharaui. Puro comércio de princípios, com decisões políticas para as quais os Direitos Humanos valem zero.

Na sequência da tragédia de Melilla, várias organizações, como os Médicos do Mundo, denunciaram tratar-se de “uma consequência direta da política europeia e espanhola de externalização das fronteiras, que transfere o controlo das suas fronteiras externas para países terceiros, em troca de uma substancial ajuda financeira”. Helena Maleno, da organização Caminando Fronteras, não hesitou em afirmar que “as relações entre Marrocos e Espanha estão manchadas de sangue.”

Se o primeiro-ministro espanhol não dirigiu uma única crítica a Marrocos, o primeiro-ministro português também nada disse sobre o seu congénere espanhol. Juntos na Cimeira da NATO em Madrid, na semana passada, Costa e Sanchez tiveram todavia uma proposta em uníssono: a de que a NATO (de que Portugal foi fundador por iniciativa de Salazar, não esqueçamos) dedique recursos e prioridade, para lá da Ucrânia, à “segurança do flanco sul da Aliança”, nomeadamente mobilizando recursos de defesa para combater “a pressão da imigração ilegal”, considerada pelos dois governos como uma “séria ameaça” à “segurança do sul europeu”.

Como outros governos europeus, também o nosso tem os direitos humanos na boca, mas engole em silêncio se as vítimas estiverem em Melilla ou em Ceuta. Portugal, que Pessoa apresentou como rosto da Europa, figura jazendo virada para o oceano, apoiada nos cotovelos, fitando o ocidente “com olhar esfíngico e fatal”, não tem vista, afinal, para estes crimes. “Não tem olhos, nem mãos,/nem fita nada, a Europa. Nem cotovelos tem/ que possam suportar justiças e bondade”, escreveu Ana Luísa Amaral, há alguns anos, num livro em que desmonta lucidamente tantas histórias por contar na nossa História e na nossa literatura. Como esta, agora. “Pouco fita a Europa, a não ser mortos”. E no nosso silêncio se putrefaz.»

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