6.7.22

Não se queixe, o caos do aeroporto é o sucesso do mercado

 


«O número de voos europeus cancelados em junho foi o triplo do que ocorrera antes da pandemia. Nos Estados Unidos, pior. Julho ultrapassará estes recordes e já nos dizem que agosto será uma aventura. Os aeroportos são um pandemónio, há quem durma várias noites seguidas pelo edifício, conseguir apanhar um voo confirmado tornou-se uma lotaria, a burocracia é uma réplica d' “O Processo” de Kafka, não sabe, não está, não diz a que pena foram condenados os pobres passageiros, que esperam até chegar a esmola do ocasional cumprimento do contrato.

Este é o resultado de um notável sucesso. O mercado, como agora delicadamente se chama às empresas que dominam o setor, cumpriu de modo exemplar o seu desígnio, manobrou para aumentar a margem de lucro da operação. De facto, durante a pandemia, outras empresas foram apoiadas para manter os postos de trabalho; em contrapartida, as companhias aéreas foram financiadas para despedir 20% dos seus trabalhadores. Ao mesmo tempo que garantiam que tudo voltaria ao normal depois da emergência sanitária, as administrações e os seus ministros davam luz verde a um dos mais radicais despedimentos coletivos num setor das últimas décadas. Acabada a restrição, fizeram a conta e decidiram restabelecer o nível anterior de oferta com menos funcionários, além de manterem os cortes salariais que tinham sido justificados pela conjuntura passada.

Esta decisão provocou duas consequências. A primeira, a origem essencial do caos atual, é que há falta de trabalhadores. Faltam pilotos, falta pessoal de cabine, faltam administrativos, faltam seguranças, faltam funcionários de limpeza, falta tudo. E não é fácil substituí-los, considerando as condições agora oferecidas, empregos sazonais, salários baixos, turnos imprevisíveis, pressão constante, hostilidade dos clientes sacrificados, incerteza. Assim, sob a pressão da gigantesca procura de multidões que recuperam a sua ânsia de viajar e chegado o tempo de férias, os serviços colapsaram sem piedade. E, como há um efeito de dominó num sistema tão complexo e interdependente, um atraso provoca outros e, quando já são muitos, a crise agiganta-se e torna-se imparável. Nenhum dos aeroportos europeus escapa a este cenário, de Heathrow a Frankfurt, e as mais solenes das companhias andam a fugir dos seus clientes despejados nos aeroportos.

A segunda consequência é que, confrontados com perpetuação dos cortes que lhes tinham sido anunciados como emergenciais e momentâneos, quem trabalha no setor pressiona as administrações, usando o poder negocial que agora aumentou. Com algum cinismo, as empresas reclamam dos trabalhadores a aceitação de regras excepcionais ao mesmo tempo que dizem aos clientes que está tudo normalizado e milhões de pessoas compram passagens. O melhor ano do turismo, vangloriam-se os governantes, enquanto explicam que os salários devem manter-se comprimidos porque haveria uma crise que a realidade e os seus próprios discursos desmentem. Algumas empresas começam a ceder, embora propondo aumentos abaixo da inflação e por vezes recusando a reposição dos acordos anteriores. As greves vão continuar.

Para os clientes, este é um cenário de horror. Era tão fácil comprar o bilhete online, fazer o check-in online, passar por portarias eletrónicas, seguir pelo centro comercial adentro e chegar ao avião, não era? O problema é quando se precisa de falar com alguém. As pessoas desapareceram deste paraíso digital. Não se pode telefonar, ficamos presos num labirinto de códigos e gravações; não se encontra ninguém que diga quando é o próximo voo, ou se a empresa cumpre a obrigação de fornecer entretanto o hotel (e há lugar em algum hotel?), os transportes e as refeições. Não existe vivalma, é como se o cliente tivesse aterrado num planeta deserto e só tivesse náufragos à sua volta. E isso permite que as empresas usem o truque da clandestinidade para o abuso: em Lisboa, perante o desaparecimento das companhias aéreas, a solução é dormir no chão; num aeroporto alemão, viajantes afortunados receberam uma senha de 4 euros para as refeições do dia. E experimente fazer uma reclamação, busca pela internet um sítio com um formulário, receberá depois uma resposta automática e vai com sorte, mergulhou num abismo que não sabe se alguma vez lhe responderá.

Diga lá que isto não é um sucesso do mercado? Os trabalhadores reduzidos a robôs, os clientes conduzidos como gado, os pagamentos já foram feitos, deixe estar que isto há-de passar.»

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