1.10.24

Eu não sou racista, mas...

 


«Os imigrantes são o bode expiatório. Eles são responsáveis pelos preços exorbitantes das casas, pelo fecho das urgências de obstetrícia e pediatria, pelos índices explosivos de criminalidade, pelos incêndios das últimas semanas e por tudo o que vier a acontecer de mau daqui em diante. Mas não são todos. Uns são mais responsáveis do que outros.

Claro que ninguém quer deportar imigrantes alemães, ingleses ou norte-americanos, mas apenas aqueles que têm pele mais escura e uma cultura mais distante da nossa. São esses que representam a noção de perigo e de insegurança.

A extrema-direita substituiu o clássico anti-semitismo pela rejeição dos imigrantes. Já não compensa amaldiçoar os judeus, que até têm em Israel um governo recheado de racistas e supremacistas brancos.

O que pretende esta extrema-direita é concentrar-se na islamofobia, acrescentar-lhe um pozinho de cristianismo, e responsabilizar os imigrantes por todos os males sociais. “A raiva contra os imigrantes”, escrevia Soledad Gallego-Díaz no El País, “está a tornar-se tão normalizada como o anti-semitismo da década de 1920.”

É essa raiva que une a extrema-direita que governa Itália e Hungria, que faz parte de coligações na Croácia, Eslováquia, Finlândia e Países Baixos ou que sustenta o executivo sueco. E que pode vir a governar a Áustria, caso o FPÖ consiga formar ou participar num futuro executivo.

Duas semanas antes das legislativas deste domingo, na Áustria, a mesma Soledad Gallego-Díaz recordava que o FPÖ, liderado por Jörg Haider, que não escondia de ninguém a sua tendência nazi, só não participou de um governo austríaco de coligação, há 24 anos, porque a União Europeia ameaçou com restrições caso isso acontecesse.

O FPÖ de Herbert Kickl manteve o vocabulário nazi, venceu as eleições e a ameaça europeia não se repetirá caso seja governo. Uma das suas bandeiras é a “remigração”, a expulsão para os países de origem, versão do “vai para a tua terra”, que partilha com a AfD ou com o Chega.

A retórica da expulsão e deportação de imigrantes banaliza-se. Donald Trump (com origens austríacas) promete bater recordes nesta matéria; Rishi Sunak, o ex-primeiro-ministro do Reino Unido (de origens indianas), queria a tudo custo, e ao arrepio da lei, exportar os imigrantes indesejados para o Ruanda; a Alemanha fechou fronteiras em desespero com os últimos resultados do partido pró-nazi, e por aí fora.

A retórica banaliza-se e contamina uma esquerda oportunista, em países onde o tema é mais candente. Na Dinamarca, a primeira-ministra Mette Frederiksen lidera um governo de centro-esquerda que também tem um plano de deportação de imigrantes para o Ruanda — candidato ao estatuto de campo de concentração de cidadãos expulsos da Europa —, sem que isso lhe perturbe a popularidade.

Na Alemanha, Sahra Wagenknecht, filha de um iraniano e de uma alemã, que tinha militado no partido comunista da RDA, em vários grupos marxistas-leninistas e que esteve na origem da criação do Die Linke, fundou um partido com o seu nome e que é tão anti-imigração quanto a Alternativa para a Alemanha (AfD), mesmo que sem a componente racista.

Resultado: o BSW (Buendnis Sahra Wagenknecht) ficou em terceiro lugar nas eleições na Turíngia e na Saxónia, à frente do Die Linke.

Deportação, “remigração”, “nem mais um, nem mais um, nem mais um” – foi isso que ouvimos neste domingo, entre a Almirante Reis e o Rossio, em Lisboa, quando milhares de pessoas seguiram o oportunismo do Chega e fizeram eco das palavras de ordem anti-imigração e pela reconstrução de Portugal.

Ironicamente, fizeram-no no mesmo dia em que este jornal revelava que as contribuições dos cidadãos estrangeiros subiram 44% no ano passado, a mais elevada de sempre, que os empresários consideram que travar a imigração seria “devastador” para a economia ou que a criminalidade desceu nos municípios onde o número de imigrantes mais aumentou.

Vai ser necessário repetir até à exaustão que os imigrantes não roubam emprego — a economia precisa de mais imigrantes para crescer —, que não vivem à custa do Estado — contribuem mais do que beneficiam e acabam por ser vítimas da sua burocracia — e que não cometem mais crimes do que os nacionais.

Não é a imigração que está descontrolada. É o Estado que está aquém no seu papel de acolhimento e de integração, para o bem de todos, e um partido que se alimenta da mentira para ganhar votos à custa do ódio a terceiros.

Nestes tempos em que Hitler é uma tendência no TikTok, e em que os neonazis tentam torná-lo uma figura simpática, com vídeos gerados por inteligência artificial, é possível ser-se racista e xenófobo sem merecer qualquer condenação social ou política. Quem diria que um dia o discurso anti-imigração mais boçal seria eleitoralista?»


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