3.10.24

O velhíssimo legado de Costa para as Presidenciais: contas frugais, ordem da caserna

 


«Se há coisa que estamos a perceber por estes dias, com um foco permanente de intriga e destabilização em Belém, de que pode resultar a terceira dissolução do parlamento num só mandato, é que, no nosso sistema, o Presidente da República conta. E conta ainda mais quando as maiorias absolutas parecem cada vez menos prováveis.

A sondagem da Aximage sobre as presidenciais vale o que vale. Há, à esquerda e à direita, candidatos que se sobrepõem no mesmo espaço político, dividindo votos. Há candidatos improváveis e faltam os que nem nos passam pela cabeça.

Sem a possibilidade de António Guterres concorrer, por estar retido no fim do mandato de secretário-geral das Nações Unidas, não nos sobram figuras com estatuto para ocupar o lugar. Nem um militar que teve um papel central a revolução e na estabilização e que foi uma referência moral para o País, como Ramalho Eanes; nem uma figura com a centralidade política e histórica de Mário Soares; nem alguém com o perfil ético e o passado antifascista de Jorge Sampaio; nem alguém que tenha sido primeiro-ministro durante uma década marcante para a política portuguesa, como Cavaco Silva.

Odeio fazer esta conversa que pode parece saudosista, mas estamos a rapar o tacho. O melhor que temos são políticos que se destacam como comentadores e tecnocratas sem densidade política. Alguma coisa está a acontecer à nossa democracia para Santana Lopes ter mais currículo do que qualquer outro dos candidatos.

Mas há dois nomes que gostava de destacar, por parecerem inusitados mas serem bastante reveladores: os de Mário Centeno e Henrique Gouveia e Melo, que estão, aliás, bem colocados na sondagem.

É curioso que, oito anos depois do PS conquistar o governo e de uma aliança inédita à esquerda ter rompido um tabu de quase meio século, o candidato mais bem colocado à esquerda seja alguém sem currículo político anterior à sua chegada ao Ministério das Finanças, onde se destacou pela ortodoxia orçamental. A defesa das contas desequilibradas não é, como temos visto, característica da esquerda. Insistir em Sócrates, ignorando o contexto internacional, é má-fé. Mas mal está a esquerda quando a bandeira de que mais se orgulha, aquela que pode esfregar na cara da direita, é um excedente orçamental no meio de um Estado Social em crise e os recordes negativos em investimento público.

Já o primeiro lugar destacado para Gouveia e Melo é um excelente barómetro do estado da nossa democracia. O almirante não tem qualquer currículo político. Nenhum. A sua principal coroa de glória foi a competência na gestão da sua própria imagem numa função estritamente operacional, que normalmente deveria ser discreta, durante a pandemia.

Quando o cerco da oposição e do pior que existe nas corporações (com destaque para a inenarrável ex-bastonária dos enfermeiros) apertou, António Costa escolheu um militar, sabendo que o ancestral respeitinho pelas fardas teria efeito na comunicação social e na direita. Gouveia e Melo não tinha interesse político e isso protegia-o.

Como mostrei na altura, as ultrapassagens das filas de espera e pequenos escândalos, inevitáveis em momentos destes, não deixaram de acontecer ou diminuíram, até que o número de vacinas chegadas ao país não provocasse qualquer carência. Deixaram é de ser notícia. E o excelente ritmo de vacinação, que já era melhor do que os nossos parceiros europeus antes de chegar a marinha, também. Porque temos um Plano Nacional de Vacinação recente e muito eficaz e um bom Serviço Nacional de Saúde. Tão bom que vai resistindo ao desinvestimento e às campanhas privadas para o denegrir. Só que os portugueses preferem um Dom Sebastião a instituições que funcionam bem e foram erguidas por eles próprios. O gosto pelo homem providencial faz parte da nossa identidade.

Gouveia e Melo não tem apenas falta de currículo político, que também faltava a Sampaio da Nóvoa, por exemplo. Ninguém faz ideia o que pensa sobre os poderes constitucionais do Presidente e a forma como os deve usar. Ninguém conhece as suas posições sobre política internacional (para além de questões especificas ligadas à sua função), política económica, funcionamento da democracia. Se é de esquerda, de direita, de centro. Ninguém sabe o que pensa sobre qualquer coisa politicamente relevante. Nem podia saber, porque a sua carreia o impede de ter uma voz política ativa. E essa parece ser uma das suas vantagens. Neste tempo de crise de confiança, os cidadãos gostam tanto mais de um político quando menos souberem o que ele pensa. A “postura” basta.

De Gouveia e Melo, sabemos que é vaidoso e que tem usado, de forma inédita, um cargo de chefia militar para se promover, rumo ao porto da política. Teríamos de recuar aos anos 70 para ver militares a ocuparem a cargos políticos de topo. Diríamos que é de outro tempo. Mas, segundo a sondagem, o facto de Gouveia e Melo ser militar é valorizado pelos eleitores. Ele não é bom candidato apesar de ser militar, como seria normal no tempo civilista que vivemos. Ele é bom candidato porque a farda lhe dá autoridade, apesar de nem sequer estarmos a falar de um herói de guerra, como aconteceu depois da II Guerra em várias democracias.

Mas a ideia de que termos um chefe de Estado militar seria coisa estranha para a Europa pode resultar de algum otimismo em relação ao futuro. Podemos ser apenas vanguardistas. O saudosismo por este tipo de autoridade vai muito para lá das nossas fronteiras e da extrema-direita, que normalmente aprecia este perfil. Vivemos um tempo de recuo. Em todo o lado.

A parte mais interessante de tudo isto, é que um e outro, Centeno e Melo, eram desconhecidos até António Costa os ter ido buscar á Academia e às Forças Armadas. Nos dois casos, pediu-lhes emprestada autoridade. A Mário Centeno, a autoridade técnica perante uma Europa que desconfia de governos mais à esquerda. A Gouveia e Melo, a autoridade política de alguém vindo fora dela, com a farda que oferecesse confiança a um povo que acha que o assalto de Tancos foi culpa de um ministro, não das Forças Armadas.

Olhando para os resultados do conjunto dos candidatos (segundo, terceiro e quarto são de direita), até se percebe que o almirante entra bem no eleitorado de esquerda. O que torna ainda mais relevante a ironia destas serem as duas personagens que Costa deixa como legado. Um representa as contas frugais, o outro a ordem da caserna. Faz pensar que a mitologia do poder mudou pouco, seja qual for a liderança.»


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