«Eu tenho as melhores memórias da Rússia, melhor, eu devo muito à Rússia, e por isso me repugna confundir Putin com “os russos”, como agora se faz. Mais do que essas memórias, tenho uma grande admiração pelos russos e, quanto à cultura russa, ela “fez-me”, tanto como tudo o resto.
Conheci a Rússia ainda era URSS e depois logo a seguir, nos anos conturbados de transição, e no retorno a essa maldição russa, a autocracia, a ditadura. Lembro-me de um russo, membro da Duma, provavelmente do Partido Comunista, feliz por encontrar estrangeiros, convidar-me a ir a sua casa, muito modesta, num daqueles blocos de apartamentos dos subúrbios de Moscovo, iguais aos que os mísseis russos estão a destruir em Kiev. Abria os armários onde tinha a sua reserva de comidas “especiais”, aquelas que era difícil arranjar, por exemplo, uma espécie de fiambre, e oferecia-as ao “estrangeiro” por pura generosidade, porque nada tinha a ganhar com o que estava a fazer. Falámos do Hadji Murat, de Tolstoi, que ele tinha tido de estudar na escola, uma história do “império” que muito provavelmente tínhamos “lido” de forma muito diferente.
Saí pela porta daqueles prédios sinistros e hoje nem me lembro do nome do homem e da família que o acompanhava, mas sei o que significou a palavra hospitalidade. Havia uma proximidade muito parecida com a nossa, sem cerimónias nem protocolos, apenas companhia e conversa, entre dois mundos que estavam bastante longe na geografia e mesmo na história. O meu, por muito mau que fosse, com 48 anos de ditadura, o dele com a tragédia dos milhões de mortos às costas, alguns da sua família. Tragédia não é uma palavra leve, mas não se conhece nada da Rússia sem a perceber. E, no entanto, eu sabia que ele era da burocracia do poder soviético em extinção, e ele que eu era do “inimigo”. Mas, como já disse várias vezes, aquele foi um período excepcional em que as coisas podiam ter evoluído de forma diferente. Ou talvez não.
A Federação Russa de Putin estava a caminho, melhor, já lá estava. Conheci oligarcas, burocratas, militares, membros do PCUS, e não era difícil perceber que, à medida que se subia na escala do poder e do dinheiro, aumentava a brutalidade, na proporção directa do sofrimento histórico do povo russo em nome do qual exerciam o poder, e com essa indiferença pela violência quando os seus interesses estavam ameaçados. Indiferença que começava nos “seus”, em nome dos quais falavam.
Mas, na conversa anódina com o meu anfitrião russo, o território comum era o muito que aprendi sobre a Rússia e que veio dos livros, essa forma de saber cada vez mais desprezada pela ignorância atrevida das redes sociais e do mundo obsessivamente presencial dos dias de hoje. Foram estas memórias e a Rússia de Pushkin, Turgueniev, Tchekov, Tolstoi, Tsvetaeva, Akhmatova, Pasternak e Soljenitsin que me ajudaram a nunca me ter enganado sobre Putin. Em 2014, escrevi a propósito da sublevação da Praça Maidan que “a questão da Ucrânia chegou aqui, porque os europeus e os americanos foram irresponsáveis e atiçaram um conflito para que não tinham saída viável, e porque Putin é perigoso e não é de agora”.
Também não me enganei sobre Putin, nem sobre a elite dirigente da Ucrânia, sobre a qual convém não ter muitas ilusões, em particular não retratando esta guerra como uma guerra entre a democracia e a ditadura, mas sim como outra coisa: uma guerra entre um agressor e um agredido. O agressor não é o povo russo, é Putin e a sua corte militar e civil, mas o agredido é o povo ucraniano, seja quem for quem o governe. Esta diferença é aquela que, não sendo feita, faz com que quem a omite fique do lado do agressor. E nesta guerra ficar do lado do agressor é espezinhar a liberdade, a soberania, o direito, a humanidade e as pessoas. Não as pessoas “especiais”, mas as pessoas comuns.
Admito que a maioria dos russos apoie esta guerra e não é apenas porque a censura de Putin evita o conhecimento do que se passa e a dura repressão impede qualquer liberdade para o protesto. Proibir e prender, agredir e matar é uma coisa que quem tem o poder na Rússia sabe muito bem fazer desde sempre, da Okrana à Cheka, ao KGB e ao SVR, dos czares, passando por Estaline, até Putin. Mas o que também faz parte dessa tragédia russa é que alguma da sua cultura esteja exactamente nos antípodas dessa violência, e que descreva melhor do que ninguém a combinação da obediência e da rebeldia, que a história com h pequeno fez ao povo russo, aos “humildes”. Nestes dias é do conto de Tolstoi Aliocha, o Pote que me lembro, descrevendo a sua morte após cair de um telhado:
“Rezou com o pope, apenas com as mãos e com o coração. E, no seu coração, havia o sentimento de que, se aqui é bom para aquele que obedece e não ofende, também lá será bom.
Falou pouco. Pediu apenas que lhe dessem de beber e surpreendeu-se com alguma coisa.
Surpreso com alguma coisa, estendeu a mão e morreu.”»
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