«Entretidos com a "pastelaria do INEM", talvez não tenhamos reparado na essencial declaração de Tedros Ghebreyesus, diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, quando há dois dias apelou às farmacêuticas para disponibilizarem a "receita" das vacinas. Ou seja, uma produção aberta, em muito mais fábricas, globalmente, e a baixo preço. Isto é dito num momento crucial: sabemos que não é impossível produzirem-se mais vacinas no mundo. Teriam, sim, de deixar de ser feitas apenas nas fábricas da Pfizer, da Moderna, da AstraZeneca e da Johnson & Johnson (além das unidades chinesas e russas).
Não se trata de "nacionalizar/expropriar" a descoberta das vacinas ou querer perseguir os acionistas das farmacêuticas a quem saiu o jackpot. É por uma razão muito mais sólida. Como disse o diretor-geral da OMS, estas farmacêuticas receberam "substanciais fundos públicos" (biliões e biliões de euros/dólares) para o desenvolvimento da vacina, cobrindo-lhes esse risco. Ora, a abertura da tecnologia de produção da vacina pode ajudar a salvar milhões de vidas e o funcionamento planetário - inclusive para benefício dos próprios países ricos. Não haverá economia sem um mundo inteiro aberto.
Mais: face à escalada de novas variantes, as vacinas necessitarão de permanentes atualizações, faltando ainda saber quantos anos vamos ter de administrar doses a quase toda a população mundial. Portanto, este esforço tem de ser open source e global.
A Covax (que Durão Barroso preside) foi criada com dotações de Estados, empresas e milionários para fazerem chegar a vacina a todo o mundo, mas a tarefa é hercúlea. A organização não governamental OXFAM calcula que nove em cada dez pessoas dos países pobres não vão ter acesso à vacina neste ano. Em simultâneo, três quartos das vacinas produzidas até agora tiveram como destino apenas dez países e há uma guerra diplomática em curso por causa disso. Solução: produzir mais e libertar a produção. Há inúmeras fábricas de vacinas em todo o mundo disponíveis para acelerar esta luta contra a covid-19.
O controlo da vacina por meia dúzia de empresas/nações superpoderosas gerará um mundo ainda mais desequilibrado no final da pandemia. Um exemplo desta semana: o agradecimento (sentido) do presidente do Paquistão à China por lhe fornecer a vacina. Como se pagará este favor no futuro? Que engrandecimento de uma ditadura isto acarreta aos olhos das opiniões públicas de tantos países como aquele, por todo o mundo?
Foi, aliás, ultrajante, a posição do enviado da União Europeia a Moscovo, Josep Borrell, a quem se pediu simultaneamente uma ação firme de condenação do encarceramento do líder da oposição, Alexei Navalvy, e ao mesmo tempo uma atitude de charme para se negociarem vacinas russas para a Europa.
Vai continuar a existir mundo depois da covid. A pior coisa que nos poderia acontecer seria acordarmos num globo dividido em dois - o que foi controlado pela diplomacia da vacina chinesa (e russa), em contraponto ao mundo ocidental, fechado em si mesmo, que só se preocupou em salvar os seus cidadãos à frente de todos os outros - e onde realmente ninguém quer saber se os profissionais de saúde ou idosos de África, Ásia ou América Latina podem sobreviver.
Como não há vacina nem para a ansiedade nem para a demagogia, ataque-se o mal na raiz: abra-se a produção da vacina a todos. Infelizmente, só as opiniões públicas dos países ocidentais podem gerar essa mudança porque o establishment dirá que é impossível de ser feito. Até acontecer.»
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