«Filas de comentadores pedem, em modo Miss Mundo, uma campanha que não se espoje na “lama”, expressão para o escrutínio às relações financeiras de um primeiro-ministro em exercício com empresas que dependem de decisões do Estado. Isto até seria possível, mas não aconselhável, em eleições normais, mesmo com um candidato sob suspeição. É impossível quando foi o próprio a exigir um plebiscito à sua honestidade. O tema desta campanha são mesmo os “becos de natureza pessoal e ética” de Montenegro, usando um eufemismo do Presidente. E há pelo menos um beco que, vença quem vencer, continua¬rá sem saída: nenhum primeiro-ministro pode receber uma avença, diretamente ou através de uma empresa de fachada, ou pode achar que as suas relações empresariais estão defendidas por qualquer tipo de sigilo. A CPI teria servido para que a vitimização em campanha não ocupasse o lugar do escrutínio no Parlamento. E a certeza que o primeiro-ministro iria ser “torrado” é sinal de pouca confiança nos factos e nas provas.
Fora isto, o que há para debater? Os programas dos partidos serão semelhantes aos do ano passado, os líderes são todos os mesmos. De lá para cá o mundo mudou, mas não estou seguro de que os dois principais candidatos tenham coisas diferentes a dizer sobre as consequências da vitória de Trump. Insensível a três eleições e dois Governos em quatro anos, a nossa economia foi crescendo, enquanto saltávamos entre crises políticas ao dobro do ritmo da zona euro. As crises do SNS e da habitação continuam a agravar-se, com a ajuda de uma desastrosa ministra da Saúde e de políticas que inflacionaram ainda mais os preços das casas. Pelo menos as promessas de soluções em 60 dias não se repetirão. O dinheiro do excedente herdado foi distribuído, como se esperava, a pensar num ciclo curto. É o trunfo deste Governo, depois de Costa nos ter andado a dizer que era insustentável responder às exigências de professores, polícias e oficiais de justiça. Com custos para a eficácia do Estado e, já agora, para o PS.
O Governo também não caiu por um bloqueio político ou por ação da oposição, como na Madeira. O PS viabilizou-lhe o programa e o Orçamento, com alterações que, no fim, se resumiram a matar uma versão do IRS Jovem que até Montenegro reconheceu ser disparatada e descer menos um ponto percentual o IRC. E há poucas semanas inviabilizou duas moções de censura. O Presidente foi amigo e poucas leis tiveram de passar pela Assembleia da República. Nunca um Governo com uma base parlamentar tão curta teve tanto espaço de manobra.
Passado um ano das últimas eleições, e sem um bloqueio que tenha impedido a governação, como raio poderíamos não passar uma campanha a discutir a falta de ética de Montenegro? É a única razão para termos sido obrigados pelo próprio a voltar às urnas. É verdade que, com a atual intensidade mediática, tudo cansa muito depressa. O arrastão, que mistura o relevante com o acessório, o rigoroso com a mentira, tende a dessensibilizar as pessoas. Mas que o PSD não se iluda: mesmo desfocado, o perfil de Luís Montenegro mudou para sempre e com toda a justiça. As pessoas nunca mais o verão da mesma forma. E que o PS não se iluda: seria um enorme erro Pedro Nuno Santos concentrar o seu discurso nestes casos. O estrago já foi feito por Montenegro e pairará na campanha. O resto será feito pelos outros partidos, figuras secundárias do PS e notícias que saiam. O líder da oposição precisa de conquistar o que faltou há um ano: credibilidade para converter o desgaste de Montenegro em voto no PS. Não faltam indecisos numas eleições que ninguém queria. Falta confiança numa alternativa. Isso não se faz a falar da empresa do primeiro-ministro.
Estou convencido de que, com mais ou menos clareza, a maioria dos portugueses já percebeu que as relações de Montenegro com algumas empresas são, sendo delicado, muito pouco saudáveis. O que nos será perguntado não é se acreditamos nele. Suspeito que, se dependesse apenas disso, a sua vitória seria improvável. O que nos será perguntado é se, havendo uma situação económica estável e tendo distribuído dinheiro, nos importamos com a vulnerabilidade de quem nos governa. É que isto não vai desaparecer depois das eleições. Acontecendo depois de Sócrates, este “plebiscito” será mais sobre nós do que sobre o primeiro-ministro. Em geral, sou pouco otimista em relação à exigência da maioria das pessoas nesta matéria. Se a vitória do ano passado não tivesse sido tão curta, ia ao Estoril apostar que Montenegro se aguentava, como Albuquerque se aguentará. Veremos se o líder do PS, que ao fim do ano já não é visto como “irresponsável”, consegue conquistar mais do que a deceção ética com Montenegro.»
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