«O populismo moderno já não rejeita a democracia. Pelo contrário, veste-lhe a pele. Ou melhor, abraça a sua versão reduzida a um único princípio: a vontade da maioria expressa no voto. O argumento é simples e enganador: quem vence eleições não só tem o direito de governar como o de reescrever as regras, deslegitimar contrapesos e colocar o Estado de Direito em segundo plano.
Os seus líderes já não falam em acabar com a democracia — querem "purificá-la". Dizem que a verdadeira democracia é aquela onde a vontade do povo prevalece sem entraves, onde a maioria governa sem limites, onde instituições que regulam o poder são um vestígio elitista que precisa de ser eliminado.
Neste modelo, quem governa deixa de estar submetido às regras democráticas e passa a ser o único intérprete legítimo da voz do povo. O líder eleito já não responde a tribunais, parlamentos ou imprensa — responde apenas ao eleitorado. E, se houver resistência, a culpa é das “elites”.
Os exemplos são evidentes. Viktor Orbán usa referendos manipulados e consultas nacionais para justificar o seu poder, enquanto denuncia tribunais e parlamentos como obstáculos à democracia real. Donald Trump convenceu milhões de americanos de que eleições que não o favorecem são fraudulentas. Jair Bolsonaro ensaiou um golpe no Brasil com o mesmo argumento. Benjamin Netanyahu tenta moldar o sistema judicial à sua sobrevivência política. Em cada um destes casos, a democracia não é rejeitada — é instrumentalizada.
E o resultado é sempre o mesmo: um líder eleito que se torna intocável.
A democracia liberal não se esgota no voto. A sua essência está no equilíbrio de poderes, no respeito pelas instituições, na liberdade de imprensa e na submissão de qualquer governo às regras que o precedem e o sucedem. Quando um líder decide que as urnas absolvem tudo, abre-se um precedente perigoso: o voto deixa de ser uma escolha e passa a ser um salvo-conduto para governar sem limites.
Luís Montenegro não está a seguir esse guião. Não está a descredibilizar eleições passadas. Não está a atacar tribunais. Não está a anunciar um regime à medida.
Mas está, sem querer, a normalizar uma lógica que pode ser usada por quem venha depois dele.
Montenegro quis resolver uma crise política recorrendo a eleições. Até aqui, nada de extraordinário. Mas o que está verdadeiramente em jogo nestas legislativas não é um programa de governo nem uma escolha entre políticas públicas. É um julgamento de confiança. Montenegro recorreu a uma moção de confiança que sabia inviável porque preferiu transferir essa decisão para o eleitorado.
Não é ilegal. Não é anti-democrático. Mas é um precedente que redefine a forma como a política pode ser usada para escapar à fiscalização institucional.
Se Montenegro vencer e interpretar essa vitória como um referendo à sua idoneidade, abre-se uma porta perigosa. O que impede, materializado o precedente, que um líder mais extremado veja na convocação de eleições um método para fugir à fiscalização e reforçar um poder absoluto?
Montenegro não é um iliberal (já aqui elogiei, aliás, a sua coragem no não é não). Não é Orbán. Não é Trump. As diferenças são evidentes. Mas as regras democráticas não se desfazem num dia. A erosão institucional não acontece com golpes. Acontece quando práticas que deveriam ser exceção se tornam norma.
A história da democracia não se faz apenas com aquilo que os líderes de hoje fazem. Faz-se, acima de tudo, com aquilo que os líderes de amanhã aprendem que podem fazer. Se Montenegro ganha e diz que as eleições o absolvem de qualquer dúvida, estará inocentemente a ensinar uma lição que um dia poderá ser usada contra a própria democracia.
E, nesse dia, talvez seja tarde para perceber que democracia nunca foi só contar votos.»
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