«Caro leitor, cara leitora
Há já longos anos, durante uma entrevista ao sociólogo catalão Manuel Castells a propósito da sua obra seminal sobre a sociedade da informação, perguntei-lhe onde residia a força dos Estados Unidos. Na sua economia? No seu poderio militar? Castells interrompeu-me para dizer sem hesitar: "Nas suas universidades". Explicou-me detalhadamente porquê e como eram financiadas por grandes somas vindas directamente do Pentágono.
Veio-me esta entrevista à memória ao ler as notícias cada vez mais frequentes sobre os ataques da actual Administração às universidades americanas, sobretudo, as da Ivy League – de Harvard, a mais antiga e a mais famosa, a Yale, passando pela Columbia ou pela Brown, nomes que nos são familiares. Esses ataques passam pelo corte de verbas, sobretudo à investigação científica, e até pela expulsão de académicos de outros países cujos green cards são inesperada e ilegalmente cancelados.
Na sua última coluna do Washington Post, Fareed Zakaria chamava a atenção para as consequências do que se estava a passar, num texto intitulado Trump is launching America’s version of the Cultural Revolution. "Não há área em que o domínio global dos Estados Unidos seja mais absoluto do que no ensino universitário", diz o colunista, lembrando que, com 4% da população e 25% do PIB mundial, a América tem 72% das 25 melhores universidades do mundo, segundo um dos rankings mais considerados, e 64% noutro.
É esse tesouro que está a ser subvertido pela Administração Trump. Sem surpresas, diz Zakaria. Basta-lhe citar um discurso de J.D. Vance durante a Conferência Nacional Conservadora de 2021. "Temos de atacar as universidades honesta e agressivamente. Os seus professores são nossos inimigos". A Administração de que é vice-presidente está a pôr "agressivamente" este objectivo em prática. O assalto mais radical está a ser financeiro, prossegue Zakaria, traduzindo-se pelo congelamento ou pela redução drástica das subvenções e dos empréstimos do Governo federal. O impacto cumulativo pode atingir milhares de milhões de dólares de cortes em programas e projectos de investigação.
Quando um líder político quer transformar uma democracia numa forma de governo autoritário, procura minar as fontes independentes de informação e de responsabilização, explica o colunista. Dos tribunais à imprensa, passando pelas agências governamentais autónomas. Putin fá-lo há 25 anos. Em menor grau, é este o caminho que está a ser seguido por Viktor Orbán, na Hungria, ou Narendra Modi, na Índia. "O enfraquecimento da educação superior é uma parte importante desta estratégia".
Só a suspensão do funcionamento da USAID, para além da fome, da doença e da morte que já está a provocar, cortou 800 milhões de dólares de subvenções à John Hopkins. A Columbia sofreu um corte de 400 milhões porque foi acusada de antissemitismo. Com o fim anunciado do Departamento da Educação, que já viu o seu staff reduzido a metade, acaba também grande parte do apoio directo aos estudantes. Há, evidentemente, processos judiciais para tentar impedir estas medidas, mas se Donald Trump tenciona cumprir o que os tribunais decidirem é hoje uma enorme interrogação. Na semana passada, num discurso no Departamento de Justiça, insultou juízes e tribunais, para além dos órgãos de comunicação social, com particular destaque para a CNN e a NBC, que considerou "ilegais". Razão? Passam mais de 90% do tempo a "criticar-me".
O ambiente gerado junto da opinião pública pelas universidades, acusadas de wokismo e vistas como redutos privilegiados das elites intelectuais, alimentando o ressentimento, favorece estas medidas. Zakaria reconhece isso mesmo. "Demasiados professores e administradores das universidades agiram nos anos recentes como ideólogos liberais (no sentido americano do termo), mais do que procurarem a verdade empírica. Académicos tentaram silenciar o debate em torno de questões legítimas, incluindo sobre o confinamento durante a pandemia, os tratamentos transgénicos ou as questões de diversidade, igualdade e inclusão." Criaram, por vezes, um ambiente opressor. Houve, no ano passado, gigantescos protestos contra Israel na Universidade de Columbia e noutras universidades, por causa da guerra em Gaza. Houve excessos. Os estudantes judeus sentiram-se ameaçados. Se recuarmos aos anos 1960, o mesmo aconteceu contra a guerra no Vietname. Faz parte do comportamento dos jovens e das suas causas. Não se resolve com cortes à investigação científica.
Voltando a Castells: é porque a produção científica das universidades e centros de investigação está na base do poder tecnológico, económico e militar da América que estes ataques deliberados são mais uma forma de a Administração Trump enfraquecer o poder americano no mundo. Está a fazê-lo em todos os domínios, da economia às alianças, do soft power à cultura.
Perseguições
Nas universidades, não são só os financiamentos que estão em causa. Uma das razões pelas quais a América é o país com mais Prémios Nobel está também na capacidade das suas universidades para atraírem professores e investigadores do mundo inteiro. Alguns vão doutorar-se, muitos ficam. Começam agora a ser alvo de perseguição.
O New York Times relatava há dois dias um caso exemplar. A médica Rasha Alawieh, especialista em transplantes de rim e professora da Universidade Brown, detentora de um visto válido, foi expulsa do país, apesar da decisão do tribunal de Massachusetts de suspender temporariamente a ordem de deportação. No mês passado, Alawieh foi visitar a família ao Líbano, onde nasceu e estudou. Foi presa no aeroporto quando regressava e colocada num voo para Paris pelos Serviços de Fronteiras.
O Líbano nem sequer está na longa lista de países cujos nacionais vão ser proibidos de entrar nos Estados Unidos. O advogado que representa a professora e a universidade esclareceu que, enquanto ela estava no Líbano, o consulado americano em Beirute lhe emitiu um visto H-1B, que permite aos cidadãos estrangeiros altamente especializados viver e trabalhar na América. O seu visto foi patrocinado pela Brown. A médica, de 34 anos, formou-se na Universidade Americana de Beirute em 2015. Foi para os Estados Unidos, três anos depois, completar os estudos na Universidade Estadual do Ohio, para em seguida ensinar em Yale e em Brown.
Os pormenores desta história ajudam a compreender o que sentirão nesta altura os milhares de professores e investigadores em situação semelhante à de Rasha Alawieh. Os Estados Unidos começam a ser um destino perigoso. Até para quem dispõe de green cards ou de vistos especiais, sobretudo se não tiver a pele branca.
Caro leitor, cara leitora, este é um dos lados menos conhecidos da natureza autoritária e racista da nova Administração e, ao mesmo tempo, do seu crescente desrespeito pelos tribunais, a última barreira ao arbítrio e à ilegalidade de muitas das decisões que foram orquestradas pelo Presidente americano nestes 50 dias.
A Europa abre os braços
Entretanto, deste lado do Atlântico, as universidades europeias já começaram a aliciar os cientistas americanos, convencendo-os a vir para cá trabalhar.
O Financial Times noticiava ontem que a Universidade de Cambridge, com uma forte capacidade de atracção dada a sua alta qualificação nos rankings mundiais, é uma delas, mas não é a única. O mesmo está a acontecer em França, na Suécia, mas também na China.
Escreve o diário britânico que a Administração americana está a preparar-se para cortar milhares de milhões de fundos às agências federais, como os institutos nacionais de saúde. "O ambiente político na América é desencorajador para a investigação independente", diz ao jornal Maria Leptin, presidente do Conselho Europeu de Investigação. "O que podemos fazer é dizer com toda a clareza aos nossos colegas que a comunidade de investigadores europeus e os seus financiadores dão as boas-vindas à Europa àqueles que, independentemente da nacionalidade, consideram as suas opções para o trabalho científico ameaçadas." O reputado instituto sueco Karolinska, de investigação biomédica, está a oferecer sabáticas aos colegas americanos.
A China, naturalmente, também não perde a oportunidade. O Global Times, jornal do Partido Comunista, escreveu na semana passada que, "sob o pretexto da segurança nacional, Washington está a desestabilizar o campo da investigação científica." Diz o jornal: "Confrontados com uma pressão crescente, muitos cientistas sino-americanos estão a reavaliar a suas carreiras e a voltar a sua atenção para a China, um país mais aberto, inclusivo e cheio de oportunidades".
A América de Trump a dar mais um monumental tiro no pé.
Tenha uma boa semana»
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