11.11.22

Adultos em negação

 


«Enquanto a Europa experimentou o verão mais quente da história e a pior seca de meio milénio, o Paquistão afunda e a Cidade do Cabo tem falta de água doce para consumo, milhares de pessoas puseram-se em aviões, com o zelo burocrático da inutilidade, e pela 27ª vez foram ouvir discursos piedosos no palco e tratar de assuntos relevantes nos corredores. Macron, por exemplo, encontrou Maduro e ficou marcada uma conversa de negó¬cios com um emissário, que anda tudo ao mesmo: onde arranjar petróleo e gás barato. Falando para conferencistas protegidos por uma ditadura que evitou protestos, Guterres fez mais um discurso apocalíptico, cada vez menos eficaz, porque o anúncio do Apocalipse só assusta uma vez. Começa a ter o efeito oposto, a cada cimeira fracassada. Perdido por cem, perdido por mil.

Não me vou centrar na imensa dificuldade em mudar o mundo nos poucos anos que nos restam para impedir o ponto de não-retorno. Que renováveis nos interessam e que modelo de produção queremos para elas? As novas gerações do nuclear correspondem a um perigo aceitável? Como desglobalizar parte da economia, encurtando cadeias de produção e distribuição, sem devolver os países pobres à miséria? Como mudar a alimentação e a agricultura sem destruir culturas e identidades? Que instrumentos precisamos para que as nossas cidades, transformadas em ativos financeiros, voltem a ser para lá viver quem lá trabalha, reduzindo movimentos? Como as preparamos para o carro ser a exceção vinda do passado e o transporte público a regra do presente? Como passaremos a usar muito menos os aviões sem nos confinarmos ao espaço nacional?

A escassez de um bem ou serviço torna-o mais caro. Sem intervenção política, o sacrifício não será de um “nós” abrangente. Uns deixarão de consumir, outros continuarão a fazê-lo com a mesma frequência. E isto aplica-se a bens mais essenciais do que o turismo. O que corresponderia a um recuo civilizacional para a maioria mais pobre. E é provável que essa maioria prejudicada, vendo que o fardo não é partilhado, vote em quem lhe diga que nada disto é necessário porque se baseia numa grande mentira. O que quer dizer que esta mudança só é politicamente sustentável de duas formas: em ditaduras ou democracias de intensidade reduzida (continuando a transferir poderes para instâncias europeias não-eleitas), ou com uma agenda social tão profunda que seria uma revolução. E esta revolução é só uma pequena parte da solução. O resto do mundo, que pouco contribuiu para o estado do clima, ainda não tem eletricidade em muitas casas e produção que lhe garanta o mínimo.

O desafio é tão gigantesco que é estranho não falarmos disto o tempo todo e este não ser o primeiro critério na hora do voto. Pelo contrário, dizemos que a guerra na Ucrânia terá de ir até às últimas consequências porque está em causa o “nosso modo de vida”, que de qualquer das formas tem os dias contados. E achamos que a transição energética, em vez de ser acelerada, pode ser adiada até ao fim do conflito. Talvez imaginemos sociedades livres e democráticas em seca extrema ou debaixo de água.

Esta semana entrevistei três ativistas pela justiça climática. Entre os 17 e os 21 anos, politizadas, informadas e corajosas, lideram ocupações de escolas e faculdades e fazem exigências que sabem que não serão atendidas, atónitas perante a indiferença geral. Cresceram a pensar nisto e descobriram, quando ganharam consciência política, que os adultos não levam a sério o que lhes ensinaram na escola. Mas o mais esclarecedor é observar a reação ao seu ativismo, já evidente com os furiosos ataques a Greta Thunberg, depois dos primeiros anos de bonomia quase consensual. É raro ver uma irritação tão epidérmica, mesmo num tempo em que esse é o estado natural do debate. E percebe-se que o súbito amor coletivo à arte, quando duas ativistas atiram sopa a um vidro que protegia um quadro de Van Gogh (o que deu um novo fôlego mediático ao movimento), foi o falso argumento para a raiva que a verdade saída destas jovens bocas provoca. Primeiro negaram-se as alterações climáticas, depois a origem humana dessas alterações, agora o ódio é apenas irracional. Porque elas fazem passar os que as ouvem do estado de negação para a raiva, e isso é doloroso.

O comentário mais simpático é o que os tontos usam contra socialistas de telemóvel: então elas não se deslocam de carro? Ao contrário do que acreditam os mais liberais, as mudanças sociais não resultam da mera soma de escolhas individuais. Como em quase tudo, Thatcher estava enganada quando dizia que não existe essa coisa de sociedade. Se não existisse, a política era desnecessária. Mesmo que todos tivessem condições económicas para escolher o que comem, como se movem e como vivem, viveriam nestas cidades e nesta economia. Monges climáticos são tão inúteis perante o que aí vem como eremitas ascetas perante o capitalismo. Não se muda o mundo vivendo fora dele. Milhões morreram e mataram para vivermos melhor neste planeta. Que sorte temos que estas ativistas ainda só atirem sopa a vidros para podermos viver, melhor ou pior, neste planeta.»



P.S. – A entrevista a três jovens, que Daniel Oliveira refere no texto, pode ser ouvida AQUI.
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