«As imagens felizes das cidades libertadas de ocupantes estrangeiros fazem parte da mais bela das iconografias da História. O Exército da Ucrânia entrou em Kherson e, se a escala do júbilo é incomparável à das grandes celebrações de Paris ou Amesterdão na II Guerra, é possível perceber nos risos e nos choros, nos cânticos ou nos punhos erguidos um mesmo sentimento de reparação de uma injustiça e de recuperação da dignidade com a expulsão dos invasores. Kherson, mais do que qualquer outra das cidades libertadas, tem esse valor simbólico: a derrota dos agressores e a vitória das suas vítimas.
O que aconteceu nestes últimos dias vai, no entanto, muito para lá do simbolismo ou da justiça, questões quase sempre alheias à brutalidade da guerra. Kherson foi a única cidade capital de província conquistada pelos russos desde Fevereiro; Kherson, já perto da embocadura do grande rio da Ucrânia, o Dniepre, tem um extraordinário valor estratégico; Kherson fora anexada em Setembro e, por isso, é território da Rússia; Kherson, finalmente, foi abandonada porque os russos corriam o risco de um cerco e de uma derrota ainda mais humilhante.
A propaganda do Kremlin pode por isso continuar a dizer que a retirada foi uma pequena correcção estratégica, que ninguém acredita. Os relatos da imprensa internacional dão conta de soldados russos feridos deixados para trás, as imagens mostram sinais de debandada nos pontões do Dniepre, houve soldados a confessar que despiram as fardas e vestiram roupas civis. Os sinais de desnorte e de derrota abundam.
O Kremlin poderá também continuar a insistir que Kherson será sempre russa, que hoje só os seus líderes e os que mais ou menos veladamente os emulam conseguem acreditar. A ajuda e o treino ocidental tornaram o Exército ucraniano mais forte, enquanto o desgaste de meses de guerra e de recuos recentes deixou as tropas russas muito menos capazes. Numa guerra convencional, as apostas de vitória estão mais voltadas para Kiev do que para Moscovo.
Perante a actual correlação de forças, vale a pena tentar antecipar o passo que se segue. O reagrupamento dos russos na margem esquerda do Dniepre pode significar que, em vez de novas ofensivas, apostam apenas na consolidação de posições. O fracasso pode alimentar o mal menor: em vez de um estado-fantoche, os russos desistem de controlar todo o acesso ao mar Negro e satisfazem-se em conservar o Donbass e um acesso à Crimeia. Se assim for, espera-se uma guerra fria, estática e sem fim à vista. Um abcesso que continuará a pairar sobre a Europa como um pesadelo.»
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