25.3.22

A volúpia da guerra

 


«Com todos os objetivos iniciais de Putin falhados, a guerra de fim incerto chegou a um impasse e fará cada vez mais vítimas civis. Impacientes com o horror, muitos pensam como se já estivéssemos na III Guerra Mundial. Assumi-lo, quando a guerra continua circunscrita a um território e a dois beligerantes diretos, é descartar os passos para impedir que alastre. E nasce da tentação de escrever a história do presente. Da forma mais fácil: decalcando-a do passado, quando os níveis de integração económica internacional eram diferentes, não havia uma grande potência fora do mundo ocidental e não tínhamos entrado na era nuclear. Partindo do mesmo anacronismo que levará a Rússia ao desastre, ninguém quer estar no lugar do apaziguador. Sem adversativas quanto ao lado de onde vem a agressão, é onde permaneço.

Os europeus olham com espanto para uma guerra “em plena Europa”. Para o cerco a Mariupol e as suas valas comuns. Para a insanidade criminosa do tirano. Para as bombas que caem numa grande capital europeia. Para a ironia “desnazificadora” de Putin, que matou, em Kharkiv, Boris Romanchenko, 96 anos, sobrevivente de Bergen-Belsen e Buchenwald e ex-combatente do Exército Vermelho. Estamos, pela primeira vez em 80 anos, a ver tudo pelos olhos das vítimas. E descobrimos que as guerras nunca acabaram. As tantas em que participámos como agressores foram desmateria¬lizadas, com as vítimas vistas de longe. E é por isso que a revoltante imagem de europeus massacrados nos faz regressar a um passado longínquo, abalando o conforto que este mundo nos tem oferecido. Expostos diaria-mente a uma tenebrosa realidade que desconhecíamos, as nossas cabeças regressaram ao último momento em que isto foi possível. E ouvem-se nos discursos políticos as botas cardadas do passado.

Hipnotizados pelas imagens dos horrores da guerra a que somos expostos 24 horas por dia e a que fomos asseticamente poupados durante décadas, muitos flertam com o enfrentamento direto que levaria a uma guerra nuclear. Tal como as guerras que fizemos e não vimos, este risco transformou-se numa abstração. Numa doença crónica esquecida. Dizem-nos que só não a temendo poderemos lidar com um bully. Que, caso contrário, ele nos verá como “medricas”. Putin não é apenas um bully, e já o devíamos ter percebido. Mas a aventura nuclear, que uma simulação da Universidade de Princeton diz que provocaria 34 milhões de mortos e 57 milhões de feridos logo no seu início, não é a única que nos propõem. Joe Biden exige que a China escolha um lado. Como precisamos dela como mediadora, o nosso problema é mesmo se o escolher. A não ser que, numa caminhada sonâmbula para o abismo, haja pressa para uma clarificação que nos faça entrar numa nova ordem mundial, com a China, a Rússia e talvez a Índia de um lado e EUA e Europa do outro, pondo fim a uma globalização em que estamos em perda.

Aquilo a que convencionámos chamar de Ocidente acreditou que um capitalismo global desregulado traria a prosperidade e a democracia, bastando intervenções cirúrgicas — militares e brutais, se preciso fosse — para manter o domínio sobre os recursos. Só que o mundo que dominámos mudou. Sem disparar um tiro, com um capitalismo de Estado e planeado ainda mais implacável, a China está a tomar o nosso lugar. Em África, onde oferece nem menos nem mais liberdade, nem menos nem mais paz, nem menos nem mais respeito pelos direitos humanos, já decide tudo. E faz o seu caminho no resto do mundo. Os EUA, que uma esquerda mais antiamericana do que anti-imperialista ainda vê como o centro de todas as coisas, são um império poderoso mas em declínio. A Rússia estrebucha violentamente em busca de um passado que já nem sequer é próximo. E a Europa, entretida com a sua desindustrialização e megalomanias federais, transforma-se no parque de diversões do mundo. Naturalmente, desejamos regressar a um jogo que conhecemos: o da Guerra Fria. Com novos e velhos atores. Só que ela não volta, porque tudo mudou e é mais complicado.

Achamos que somos atrativos porque vivemos em democracias. Mas, ao verem como deixámos os sírios morrerem no Mediterrâneo enquanto nos mobilizamos (e bem) para receber ucranianos, o resto do mundo percebe que os nossos valores são, como se lê nos estabelecimentos comerciais, para consumo exclusivo da casa. Duvido que nos queira acompanhar numa guerra planetária por uma coisa que não lhe diz respeito. Muitos conhecem a guerra de sempre e não são tão impressionáveis perante os seus horrores. Também conhecem o neocolonia¬lismo e não lhes faz diferença se é chinês, europeu ou norte-americano. Nós já não somos o centro do mundo nem temos o poder de antes. Por isso, em vez de nos deixarmos enfeitiçar pela volúpia da guerra, julgando que ela salvará as nossas democracias, temos de nos concentrar em garantir, por agora, que a China não dá a mão a Putin. Há solução para a guerra? Apenas provisória, injusta e urgente. Quem procura resolver agora todos os impasses do mundo quer uma coisa mais grandiosa. Mas os seus desejos não nos levarão a lugares muito diferentes dos que Putin procura.»

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