22.3.22

As mentiras de Putin, a extrema-direita e os Machados que regressarão

 


«É impossível acompanhar uma guerra em direto, quase 24 horas por dia, sempre do lado da sua principal vítima, manter qualquer racionalidade no debate para além da enunciação de postulados morais evidentes: que esta ocupação é imoral, criminosa e ilegal. Tudo o que não corresponda a esta simplicidade moralmente necessária tenderá a ser ignorado. E é por isso que um trabalho como este (muito útil para este meu artigo), que há dois anos era banal em jornais como o “Público”, não teria hoje grande impacto – apesar da “Visão” ter regressado ao tema, não deixando de ser a criticada por quem acha que, em jornalismo, há factos indesejáveis.

Se alguém falar das milícias paramilitares e militares de extrema-direita na Ucrânia responderão, e até se compreende, que se está a repetir a propaganda de Vladimir Putin, que usa o Batalhão Azov como argumento para a necessidade de “desnazificar” a Ucrânia. Na melhor das hipóteses, virá a pergunta: e isso justifica a invasão? Não só não justifica como a propaganda de Putin se baseia em várias premissas falsas.

Os grupos armados e violentos da extrema-direita ucraniana (presentes, mas não liderantes, nas revoltas de 2014) cresceram e reforçaram-se sobretudo durante a presidência de Petro Poroshenko, o ex-presidente que o comediante Zelensky, judeu, derrotou em 2019. Desde a anexação da Crimeia, formaram-se vários grupos paramilitares de extrema-direita, financiados por oligarcas ucranianos, como o Azov, o Dnipro 2, o Shakhtarsk, o Aidar ou o Poltava. Mas o máximo que se pode dizer de Zelensky é que não teve condições para reverter este processo, numa presidência em que a sua popularidade esteve em queda até ao início desta guerra. Muito menos o conseguiu Poroshenko, a grande desilusão que nasceu do Euromaidan, e que até chegou a tentar desarmar um grupo armado ligado ao partido radical “Pravi Sektor” (Setor de Direita).

Por outro lado, o exército russo também conta com a participação e o apoio do grupo Wagner, a empresa de mercenários de Valeryevich Utkin, um neonazi condecorado pelo presidente Putin. A que se acrescenta, nesta guerra, a temível Guarda Nacional chechena, responsável por crimes de guerra na Chechénia. Pensar que esta gente “desnazificaria” fosse o que fosse, só mesmo para fazer humor negro. E não é difícil perceber que são os russos que se comportam como os nazis nesta guerra.

Das mentiras de Putin não resulta que seja falso que o Batalhão Azov (e outros grupos neonazis armados, o que torna absurdas comparações com o Chega) exista, que se mova pelo ódio a judeus, homossexuais e minoria russa, que tenha sido integrado na Guarda Nacional em maio de 2014, numa tentativa provavelmente frustrada de ter algum controlo sobre ele, e que mantenha o essencial dos seus traços ideológicos, comuns ao ultranacionalismo ucraniano com um passado de colaboracionismo e antissemitismo (para além do compreensível anticomunismo). Não tem nem a dimensão, nem o poder que Putin lhe atribui. Mas existe. E é por não ser uma fantasia que o Congresso norte-americano proibiu que lhe fosse dada mais ajuda militar, em 2018. A falsidade resulta disto tudo ser um pretexto cínico, não uma justificação.

UM BANQUETE PARA AS DUAS EXTREMAS-DIREITAS

Esta guerra, tal como a do Donbass, que dura há oito anos, será combustível para as extrema-direitas ucraniana e russa. Na Rússia, a que aceitou ser leal a Putin – e que foi combater para o Donbass – está a apropriar-se do “Z” usado nos tanques russos como sua imagem de marca. E o Kremlin tem um discurso cada vez mais próximo com o seu. Viverá tempos animadores.

Na Ucrânia, os combatentes ultranacionalistas desempenharão um papel “heroico” na resistência. Como setenta e quatro transcreve do relatório da Freedom House de janeiro de 2020, “a guerra no leste deu uma nova legitimidade social a grupos de extrema-direita, trazendo consigo níveis sem precedentes de sofisticação, financiamento, recrutamento e capacidade organizacional”. Com esta guerra, terão a possibilidade de atrair mais pessoas de todo o mundo. Poder político já ganharam, com o comandante do Batalhão Aidar, acusado pela Amnistia Internacional de crimes em Lugansk, a chegar a governador de Odessa. Estes grupos serão, aliás, um grave problema para qualquer solução de paz negociada que, a acontecer, tentarão boicotar.

Isso não muda um milímetro na barbaridade desta guerra “repugnante” (como lhe chamou o papa Francisco), na sua ilegitimidade e nas pulsões imperialistas e expansionistas de Putin. Só não precisamos de apagar factos para desfazer a propaganda de Putin. A melhor arma contra ele é a verdade, não é fingir que as contradições não existem, como em todas as guerras. A clareza moral é mais fácil nesta guerra do que em quase todas. É claríssimo quem ocupa e quem é ocupado e o ocupante nem consegue simular um argumento. Não precisamos de embelezamentos da realidade para fazer qualquer condenação.

Não é de agora que a Ucrânia é destino de ativistas de extrema-direita em busca de treino militar e contactos internacionais. Mas, desde 24 de fevereiro, as coisas mudaram. Aos compreensíveis apelos de Volodymyr Zelensky e Dmytro Kuleba para que cidadãos de todo o mundo se alistassem na Legião Estrangeira responderam (no Fight for Ukraine), nas primeiras semanas, mais de 20 mil pessoas. Há muito que o Batalhão Azov e o seu partido, Corpo Nacional (aliou-se ao Setor Direito e ao Svoboda e não conseguiram mais do que 2,15%), defendia a formação de uma Legião Estrangeira. E não é por acaso.

Nos que seguiram para a Ucrânia haverá de tudo: pessoas que, procurando aventura, rapidamente regressam; mercenários; ex-militares solidários com a resistência ucraniana; e militantes de extrema-direita. Com os últimos, que provavelmente serão uma pequena minoria, devemos preocupar-nos.

LEMBRAR O AFEGANISTÃO

Os ativistas de extrema-direita estão-se nas tintas para o povo ucraniano. Sabem que terão acesso a treino militar, a armamento e a uma rede internacional. A Ucrânia em guerra não tem qualquer capacidade de controlar em que mãos ficam essas armas. Cabe-nos a nós, na Europa, impedir que ativistas identificados como perigosos vão para a Ucrânia treinar-se, armar-se e fazer contactos. Em nome da nossa própria segurança, porque vão regressar mais perigosos. E em nome do futuro da Ucrânia, que depois da destruição russa será um Estado insustentável durante muitos anos. É esse um dos objetivos de Putin, aliás.

Como disse o politólogo José Filipe Pinto à “Visão”, é possível que este conflito se torne numa “rampa de lançamento” para “ser criado um movimento de extrema-direita transnacional”. Segundo um antigo agente do FBI ,“a instabilidade na Ucrânia oferece aos extremistas da supremacia branca as mesmas oportunidades de treino que a instabilidade no Afeganistão, Iraque e Síria ofereceu durante anos aos militantes jihadistas”. O Counter Extremism Project diz que "vão provavelmente obter experiência de combate na zona do conflito e terão potencialmente um maior impacto nos meios extremistas orientados para a violência nos seus países de origem depois de regressarem". E defende que se deve "interromper a viagem desses extremistas". É bom recordar que foi a rede de contactos criada no Afeganistão, entre os resistentes à invasão soviética, que esteve na origem da Al-Qaeda.

Há uma diferença entre relatar tudo isto e discutir os riscos que corremos quando permitimos que ativistas de extrema-direita com cadastro usem a Ucrânia para ganharem treino, armas e contactos e alinhar na propaganda da “desnazificação” como pretexto para ocupar um país soberano. Infelizmente, como a comunicação social decidiu tirar uma folga e resumir o seu trabalho à simplificação do que é complexo e contraditório, ignora tudo o que não seja mobilizável para o esforço de guerra. Em vez de contribuir para uma solidariedade informada, contribui para a infantilização da opinião pública.

O NEONAZISMO HUMANITÁRIO DE MACHADO

Pode ser esta ignorância geral do contexto desta guerra e dos seus perigos que pode ajudar a explicar que uma magistrada tenha decidido dispensar Mário Machado, com um largo cadastro criminal, de cumprir a medida de coação de apresentações quinzenais numa esquadra de polícia para poder rumar à Ucrânia. Ou então nem sabe quem é Mário Machado, o que seria ainda mais caricato.

Certo é que a juíza do TIC de Lisboa teve em conta “a situação humanitária vivida na Ucrânia e as finalidades invocadas pelo arguido para a sua pretensão”. Respondeu positivamente ao apelo do avogado que argumentava que o arguido “mobilizou um grupo de pessoas de diversas nacionalidades que se propõe ir para a Ucrânia prestar ajuda humanitária e, se necessário, combater ao lado das tropas ucranianas”. Indiciado num processo de incitamento ao ódio racial e violência, Machado vai para a Ucrânia fazer trabalho humanitário. Indiciado pelo crime de posse de arma proibida, vai armar-se noutro país. Parece um sketch de humor, mas aconteceu num tribunal português.

Alguns ainda se lembrarão da forma como as Primaveras Árabes nos foram contadas. Do ponto de vista moral, as razões dos protestos eram evidentes. Como o jornalismo das emoções achou que elas chegavam, ofereceu-nos a visão simplificada e romântica, porque num momento daqueles seria indecente falar das contradições do lado do protesto. Sabemos como as opiniões públicas ocidentais não tinham os instrumentos para perceber nada do que aconteceu depois. Não somos crianças. Podemos ter acesso à complexidade da situação sem vacilar nas nossas convicções morais. Quanto mais não seja, para não contribuir para aumentar alguns dos terríveis efeitos que esta guerra terá.»

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