«Quando se tornou mundialmente famosa a fotografia de Aylan, ou Alan Kurdi, o menino de três anos que tinha fugido com o pai para a Turquia e morreu à beira da praia onde esperava ser acolhido, houve uma comoção generalizada. A imagem era tremenda, mostrava a morte avassaladora e a tragédia daqueles refugiados da guerra síria parecia imparável. O Mediterrâneo estava a ser transformado numa vala comum onde milhares de pessoas perderam a vida, Bruxelas contratou com a Turquia uma fortuna para garantir que os refugiados não chegavam à fronteira europeia e o desinteresse instalou-se, mesmo que fugazmente perturbado por essa fotografia dilacerante de Aylan. O mesmo já tinha acontecido e continuou a suceder com os refugiados das guerras do Afeganistão. A Europa fechou-lhes as portas.
Em contrapartida, quando começou a invasão da Ucrânia pelas tropas russas e se desencadeou a maior migração dentro da Europa na sua história recente, os refugiados foram acolhidos.
Já mais de três milhões de pessoas terão saído do país e muitas mais lhes seguirão os passos, sendo recebidas nos países fronteiriços ou, em alguns casos, deslocando-se para outros destinos, como Portugal. Esta resposta humanitária é uma prova de grandeza e de amparo das vítimas da guerra. É um modelo do que deve ser a resposta de emergência, com a solidariedade necessária.
Essa solidariedade faltou aos curdos, aos sírios e aos afegãos, entre muitos outros deslocados de guerra. E, para o escrever com todas as letras, o racismo foi a razão para a discriminação (mesmo agora, nas fronteiras europeias, houve casos de discriminação contra africanos que saíam da Ucrânia). Zizek revelou uma mensagem do governo esloveno, logo no início da invasão russa, que explicava que os ucranianos deviam ser recebidos, mas que isso não se estendia a outros: “Os refugiados da Ucrânia vêm de um ambiente que é no seu sentido cultural, religioso e histórico algo totalmente diferente do ambiente de onde os refugiados do Afeganistão estão a sair”. São europeus de olhos azuis, em resumo. A mensagem foi logo apagada, conspurcava o discurso de um governo de extrema-direita que, nestas circunstâncias, não quer lembrar que discrimina os refugiados por razões étnicas ou religiosas. Mas a discriminação não desaparece pelo facto de ter sido ocultada.
Hoje, Aylan continuaria a arriscar-se a não ser recebido na Europa. Haverá talvez um dia em que todas as vítimas das guerras serão acolhidas com respeito. Então teremos uma Europa decente. Ainda falta muito para que sejam recebidas essas pessoas perseguidas pela guerra e que são como nós, seres humanos.»
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