«Nestes dias comemora-se a ultrapassagem do tempo da ditadura pelo tempo da democracia. Não sei se sou só eu que se estranha com esta situação: olhando a partir do meu tempo “vivido”, a ditadura demorou muito mais tempo do que a democracia. Muito mais tempo, a “longa noite”. E no entanto, eu vivi mais tempo em democracia do que em ditadura e muito mais ainda se deixar de contar a infância. É “parece-me” com todas as limitações dessa subjectividade. E, no entanto, a aceleração da história ou a sua estagnação existem para além do “parece-me”, sendo que o tempo do capitalismo industrial, da sociedade de consumo, dos totalitarismos do século XX, das democracias é sabido que é tido como sendo acelerado, por exemplo comparado com a “lentidão” do tempo medieval. É um terreno historicamente complicado, propício à asneira, mas, na verdade, “parece-me”… Não é ciência, é percepção.
Olhando para os 48 anos de ditadura, o tempo parece-me muito longo; os 48 anos de democracia um instante incomparável com o anterior. Como é possível? Escrevendo sobre os anos de 1926 a 1974, passo por períodos muito definidos de história, os anos do estertor da República com as últimas tentativas do “reviralho” até 1934, a consolidação do Estado Novo até à guerra, e depois o pós-guerra, fim dos anos 40 e década de 50, até pelo menos o “furacão Delgado” que abre uns anos antes a década de 60, com a Guerra Colonial, os conflitos estudantis e operários e depois a ruptura final com a queda de Salazar, o “caetanismo” e por fim o 25 de Abril. Nenhum historiador consegue escrever sobre estas quase cinco décadas sem fazer distinções entre tempos, mas há constância (ou constâncias) na ditadura, a começar por ser isso mesmo, uma ditadura. Anda tudo devagar.
Por outro lado, os 48 anos de democracia parecem-me muito rápidos. É certo que há os anos de 1975-6, entre o PREC e o 25 de Novembro, e depois a Constituição. Menos lembrado está o grande retorno de África, mas esse esquecimento pode ter a ver com a dificuldade de lembrar a culpa, a dupla culpa da guerra e do modo do fim da guerra. E depois há a queda de Spínola, a ascensão de Eanes e Soares, a ruptura da AD e a morte de Sá Carneiro, a sucessão de governos e presidentes, o vaivém entre o PS e o PSD, Cavaco, Sócrates, Passos, Costa, a “geringonça” e nos últimos anos a entrada no sistema político do populismo do Chega e do anarco-liberalismo da IL.
Por muito que estes diferentes acontecimentos marquem momentos da vida da democracia, parecem ter uma duração curta e ter menor valor estrutural do que os grandes momentos da relação da ditadura com a história do século XX. É também um problema de “pontos sem retorno”. O golpe de 1926, as revoltas do “reviralho”, o grande saneamento de 1926 a 1934, militar e civil, os anos do fascismo lusitano puro com braço ao alto, marchas de verde nas ruas, repressão violenta, a vitória franquista na Guerra Civil de Espanha, o Salazar servidor de dois amos, Hitler e Roosevelt, a “democracia orgânica”, a campanha de Delgado, a perda de Goa, a Guerra Colonial, Marcelo Caetano e o 25 de Abril, tudo foram momentos de mudança qualitativa, pontos em que se pode definir um antes e um depois. Como Salazar estava lá quase todo este tempo, a face do regime era sempre a mesma, tudo parecia “evolução na continuidade”.
Na democracia, também há desses pontos, mas são menos. Um é claramente o 11 de Março e o 25 de Novembro, as eleições de 1975 e a Constituição. Este período é temporalmente curto, de menos de três anos. A seguir a vitória da AD, em 1979, é outro ponto sem retorno pelo facto de, pela primeira vez, haver uma genuína alternância de governo, o mesmo se passando com a sequência da vitória presidencial de Soares e a maioria absoluta de Cavaco. Depois disso há muitos acontecimentos relevantes, mas, à luz dos de 1974-1989, menos intensos, sentidos como uma sequência normal, em que há mudanças, mas menos dramaticidade. São “pontinhos” sem retorno, mas numa constante de democracia plena, institucionalizada, sem grandes crises de regime, como nos anos do PREC. Aliás, parece que, à medida que os anos de democracia e liberdade vão passando, se instala um consenso de regime mais pacífico, e por isso sentido como uma normal respiração do tempo, como se nada acontecesse. Como se o tempo que nos é exterior, o tempo da história, se tornasse um tempo interior, nosso, subjectivo, mais moldado pelo passar da idade física e por isso medido apenas pelos aniversários. Comparado com 48 anos de claustrofobia e medo, sem liberdade, com polícia política e censura, guerra em África, o tempo da democracia parece mais suportável, menos pesado, logo, mais rápido. Custa menos a passar, há menos “fora” e mais “dentro”.
Referi-me muitas vezes a um tempo que é no essencial político, 48 anos de ditadura versus 48 anos de democracia, e cuja rapidez ou lentidão também se manifesta na economia, na cultura e na sociedade, mas aí há fenómenos qualitativamente diferentes com outros “tempos” com outras dependências, quer do bem-estar material, quer das modas, quer da sociabilidade. Mas também aí a claustrofobia e a autarcia paralisavam a mudança e, por isso, o tempo parecia mais lento antes de 1974. Sendo assim, um dia mais de democracia face à ditadura não me mobiliza muito, seja qual for o balanço das alterações, as coisas que verdadeiramente mudaram foram em 25 de Abril de 1974. A força dessas mudanças, a força de uma revolução, a força da liberdade, a força da democracia fazem-me estar hoje como no dia 26 de Abril, sabendo que no dia anterior tudo tinha mudado. Em bom rigor, começou a haver tempo, dia, manhã, meio-dia, tarde, fim de tarde, crepúsculo, noite e madrugada, e não só noite.»
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