«Já nem falo da violação do direito internacional como referencial mínimo de comportamento. É dele que dependem nações mais frágeis, como o Taiwan ou a Ucrânia, pelo menos na sua defesa política contra o regresso da lei do mais forte, ao gosto de Putin, Trump e Netanyahu, primos políticos e morais. Fico-me pelos resultados práticos da intervenção de Israel contra o Irão. Na sua rápida aventura iraniana, Israel teve vitórias simbólicas e práticas relevantes.
Conseguiu levar a guerra para dentro do Irão, depois de este passar décadas a combatê-lo através do apoio a guerras por procuração fora de casa.
Terá deixado em mau estado o sistema de mísseis balísticos iraniano, mas, em troca, o seu território foi bombardeado por mais do que rockets, uma experiência rara para as populações de Telavive e Jerusalém, o que mostrou a diferença entre o Irão e os outros alvos que Israel escolheu no passado recente. Imagino que, para a decisão de não continuar a guerra, terá pesado o impacto psicológico dos bombardeamentos.
Terá conseguido decapitar parte da liderança militar iraniana.
E mostrou que a aliança do Irão com a Rússia, demasiado enterrada na Ucrânia, e com a China, pouco dada a intervencionismos militares, é menos sólida do que parecia. Não sabemos, é verdade, o que aconteceria se a guerra fosse mais longe e estivesse em causa a circulação no estreito de Ormuz ou a sobrevivência do regime. Mas, depois de neutralizar o Hamas e o Hezbollah (quem acha que foram destruídos conhece mal aquela realidade), de ver cair o regime de Assad e de só restarem os hutis, no Iémen, esta prova de fogo, no momento em que o Irão está económica e politicamente mais fragilizado, foi importante.
O NARCISO E O ENGENHEIRO DO CAOS
Benjamin Netanyahu conseguiu, por fim, arrastar os Estados Unidos para uma guerra com o Irão. Era o sonho de uma vida. Mas, aí, a vitória foi pífia. As divisões dentro da base de apoio de Trump, o risco de ver o preço do petróleo disparar (e se o regime de Teerão tivesse sido encostado à parede, cometeria o suicídio económico de encerrar o estreito de Ormuz, por onde passa 20% do petróleo do mundo, afetando a China, que é o seu principal destino) e a forte possibilidade de, com uma baixa americana, o envolvimento do homem que sonha com o Nobel da Paz se tornar incontrolável na escalada dos eventos levaram Trump a picar o ponto, fazendo os mínimos para cumprir o papel de aliado de Israel, apenas no que os Estados Unidos eram indispensáveis.
Como o Irão não desejava a escalada, as suas respostas foram sempre proporcionais e, no caso dos EUA, totalmente coreografadas. Para Trump, chegou para mudar o alinhamento da Fox News, que tinham Israel como estrela, alimentando o seu narcisismo. O problema de Netanyahu é ter pouco para dar e demasiado para pedir a Trump, que pensa em tudo como pensa nos negócios.
Havia um objetivo secundário, um extra desejado, que felizmente ficou pelo caminho: fazer o regime iraniano (ou o país) colapsar através de uma intervenção externa. Até se apresentaram soluções delirantes, como a do filho de Reza Pahlavi. Não é que eu não deseje o fim de uma ditadura teocrática e brutal. Mas talvez os engenheiros do caos devessem ter aprendido com os erros passados. Iraque, Líbia e Afeganistão foram as suas extraordinárias obras. No caso do Iraque, ela levou a centenas de milhares de mortes, ao nascimento do Estado Islâmico, à guerra civil na Síria, a uma crise migratória para a Europa, ao crescimento da extrema-direita.
Para Netanyahu, é indiferente. É do caos à sua volta que se tem alimentado. Para o resto do mundo, seria uma tragédia. O regime iraniano terá de mudar por dentro. Não sendo, ao contrário do que eram o Iraque ou a Líbia, uma ditadura unipessoal; tendo uma classe média relativamente forte e instituições mais sólidas, há condições para isso acontecer. Até havia bons sinais, com a crise económica e algumas cedências do moderado Masoud Pezeshkian. Veremos se, depois desta intervenção, não foi a linha dura dos Guardas da Revolução a reforçar o seu poder. Esperemos que não.
ADIADO POR MESES
Onde o ataque conseguiu pouco foi onde dizia que tinha de conseguir tudo. Segundo a Defense Intelligence Agency (DIA), a agência de informações do Pentágono, os ataques terão apenas atrasado o programa nuclear iraniano por alguns meses – as reservas de urânio do Irão não terão sido destruídas e uma das fontes até diz que as centrifugadoras estão praticamente intactas. Num país que é autossuficiente na capacidade de o refazer.
O ataque não aconteceu porque a bomba nuclear estivesse iminente. Netanyahu diz que está iminente desde 1995. O diretor-geral da Agência Internacional de Energia Atómica e os serviços de inteligência norte-americanos nunca confirmaram evidências de que tal fosse verdade. O ataque foi decidido há um ano, aliás. Aconteceu agora por causa do enfraquecimento dos aliados iranianos e das condições operacionais. O sentido de urgência foi fabricado.
Este ataque pode ter conseguido outra coisa: uma machadada na participação do Irão no Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) e na sua participação séria em negociações, depois de Trump ter posto fim ao Joint Comprehensive Plan of Action, acordo que realmente susteve o plano nuclear iraniano (depois desta decisão, em 2018, o programa acelerou), e de ter bombardeado o país a meio de conversações.
A desnuclearização total do Irão, exigida por Israel, nunca acontecerá. Não é uma questão de regime, mas de Estado. O programa nuclear começou em 1954, com o Xá Reza Pahlavi e apoio de França e dos Estados Unidos. Por outro lado, o Irão está próximo de potências nucleares, como o Paquistão, a Índia, Israel e a China, sendo, com a Turquia (debaixo do guarda-chuva nuclear da NATO) e a Arábia Saudita (aliado preferencial dos EUA), a única grande potência sem instrumentos de dissuasão. Que lição tirou deste ataque? Que se tivesse a arma, não teria sido atacado.
A grande lição que o Irão pode tirar de tudo isto é que precisa de ter capacidade nuclear. Não obrigatoriamente a bomba, mas, como explicou Daniel Pinéu na entrevista que lhe fiz no Perguntar Não Ofende, uma capacidade de dissuasão latente. Na realidade, o TPN só funcionou contra eles. O caminho pode ser o de abandonar o TPN e a fátua que não lhes permite usar armamento nuclear. E fazer o mesmo que fez Israel: construir a arma em segredo, fora dos limites de qualquer tratado ou supervisão. O que leva à pergunta óbvia: ficámos mais ou menos seguros depois desta intervenção?»
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