29.6.11

O Bloco e o futuro


No suplemento P2 do Público de hoje, Fernando Rosas divulga um importante texto que aqui fica para quem não tenha tido oportunidade de o ler. Habituei-me a estar especialmente atenta a esta voz, «de topo», de certo modo a única que não tem andado envolvida nas tristes guerrilhas pós-eleitorais, que têm vindo a público durante as últimas semanas. (Os realces são meus.)

«Durante o passado fim de semana, alguns dos colunistas do costume voltaram a anunciar pela undécima vez o fim à vista do Bloco de Esquerda (BE). Desta feita, a debater-se com uma cavada e terminal dissidência interna potenciada pelos resultados das últimas eleições. Alguém terá de explicar a tais sábios que reincidem no erro ao confundir os seus desejos com a realidade, ou, para dizer as coisas como elas são, ao persistir em manipulá-la à luz de um velho e arreigado preconceito ideológico. Talvez por isso, resolvi desviar o nariz por umas horas dos trabalhos e teses dos meus alunos e aceitar o desafio do Público para escrever de minha justiça acerca do BE. Aí vai.


No trilho da esquerda grande

Glosou-se por aí, nestes dias de balanço pós-eleitoral, que, resolvidas as “causas fracturantes”, chegava agora ao fim o papel e a razão de ser do BE, nascido afinal como uma espécie de grupo urbano pró-modernização dos costumes. A afirmação merece atenção porque é duplamente falsa: não só as “causas fracturantes” se não esgotaram, como o Bloco aparece na sociedade portuguesa por razões políticas e ideológicas de fundo e que em muito transcendem essa visão diletante e falaciosa com que a direita e certas áreas do PS sempre o gostaram de identificar, em jeito de quem reduz e esconjura o perigo iminente.

Um perigo real para essa gente, é preciso dizê-lo. Porque o BE procurou e procura responder ao que era um vazio óbvio e essencial na esquerda: recriar o espaço político e ideológico dos muitos que se não reconhecem nem na rendição do PS à “terceira via”, ao blairismo e ao neoliberalismo, nem na ortodoxia de um PCP que ainda não matou o pai, que continua a identificar-se com os paradigmas da ex-URSS e a chamar de “irmãos” os partidos e regimes da China ou da Coreia do Norte.

Preencher esse espaço significa recriá-lo política e ideologicamente a todos os níveis: o BE surgiu neste contexto como o contrário do “partidão” vanguardista e manipulador, como um partido-movimento unindo várias esquerdas da esquerda à esquerda da rendição do PS e buscando pontes para se entender das formas mais variadas com todo o tipo de forças políticas, sociais, culturais, sindicais, etc… que se movimentam nesta área; o BE lá está na primeira linha das lutas do mundo do trabalho, mas quer ir além: pretende apoiar e dar voz, sem controleirismos absurdos, aos sectores populares emergentes na margem das organizações partidárias e sindicais tradicionais: os desempregados, os precários, os imigrantes, os movimentos de mulheres e de jovens, as minorias sexuais; o BE teve, e terá, neste quadro, uma intervenção decisiva para introduzir alterações históricas no regime dos direitos de cidadania: a legalização do aborto e dos casamentos gay, a criminalização da violência doméstica e o mais que está para vir.

Mas bem se compreende que o seu propósito vai muito para além deste item, aliás muito importante. Trata-se de criar, no sentido rigoroso do termo, um novo campo (político, social, cultural, económico) à esquerda, uma Esquerda Grande, combativa, moderna, plural que possa suportar social, política e ideologicamente uma mudança histórica: constituir-se como alternativa de governo ao monopólio da oligarquia rotativa que, do “centrão” à direita populista, tem gerido o país praticamente desde 1976. É o carácter radicalmente transformador deste projecto de renovação à esquerda que fez do BE a principal novidade da vida política doméstica no último decénio do século XX.

E, para falar verdade, é a importância estratégica deste projecto que lhe permitiu, apesar da gravidade do tsunami eleitoral, firmar-se como um partido com cerca de 250 mil votos e um grupo parlamentar de 8 deputados distribuídos pelo Porto, Aveiro, Lisboa, Setúbal e Faro. Os resultados da derrota eleitoral do BE excitaram de tal maneira as cassandras da extinção iminente que nem os souberam ler no que eles, apesar do revés, revelam: um Bloco que, com “causas fracturantes”, sem dúvida, mas muito para além delas, veio para ficar. Que criou a sua base social e política própria e traz consigo a tarefa, sobre todas subversiva, de contribuir para que a Esquerda Grande, popular, plural e socialista, unida em torno de uma plataforma de luta comum, chegue ao poder.

Dito isto, melhor se compreenderá a essencial inanidade das pressões que tentam, mais ou menos explicitamente, transformar o BE seja numa espécie de penduricalho radical de um PS rendido ao FMI (uma reprodução à esquerda da relação apendicular do CDS com o PSD), seja numa segunda versão dos Verdes relativamente ao PCP. Mesmo com o risco de desiludir os apóstolos do juízo final, sempre direi que tais posições não gozam de qualquer apoio significativo nas fileiras do BE. Pela simples razão de que para fazer isso não valeria a pena a aventura do Bloco. O original é sempre mais fiel do que a cópia.


E as eleições?

Tenho para mim, ao contrário de muito que já apressadamente se escreveu ou disse, que os resultados eleitorais não só do BE, mas da esquerda em geral, se devem sobretudo a um vasto fenómeno de transferência de sectores importantes do voto popular para a direita. O voto do pânico, o voto do mal menor, o voto que acreditou que o regresso do emprego e do salário vinha ao cabo de um sacrifício temporário mas redentor. O voto que penalizou as propostas alternativas ao programa da troika, aparentemente ineficazes porque fora do arco da única solução possível, como apregoa a impressionante campanha de mistificação ideológica que nas eleições e depois delas pretende naturalizar a sobrexploração e o esbulho e impor a sujeição à estratégia da bancarrota. O ódio à governação de Sócrates fez o resto. E, no caso do Bloco, somou-se a penalização do voto útil no PS (cuja lógica se pendurou durante semanas no empate das sondagens) e até alguma abstenção.

O PCP aguentou-se, apesar de também ter perdido alguns votos. A sua tradicional inserção regional e social, mais o aparelho sindical e autárquico que a permite segurar, ou seja, a sua História de quase um século assegurou-lhe uma mais eficaz defesa do que foi ficando do seu espaço de sempre.

Não nego que certos lanços tácticos polémicos (candidatura de Alegre, moção de censura) tenham tido alguma influência negativa em sectores mais politizados do eleitorado do BE. Mas isso não explica a largueza social da transferência de votos. Os erros principais do BE terão sido, precisamente, os de sobrestimar a capacidade de indignação e protesto popular contra o programa do FMI e o de subestimar o estado de espírito de um eleitorado que tendia a acreditar no milagre regenerador do “sacrifício nacional” e não percebeu a razão pela qual o Bloco não ia conversar com a troika. Apesar da excelente campanha eleitoral que o BE levou a cabo (propositiva, concreta, realista), isso não foi suficiente para contrariar o movimento de fundo.

Bem sei que há quem goste de insistir na “pequena política” para explicar os resultados, mas no caso concreto isso pode levar a não entender a natureza da viragem operada e do novo ciclo político que ela abriu. Pela primeira vez desde o advento da democracia a direita controla o conjunto dos órgãos de soberania com competências na direcção do Estado: o Presidente, a Assembleia da República e o Governo. Mas há uma novidade suplementar: a maioria PSD-CDS é alargada ao PS na aceitação comum do programa de governo que lhes foi imposto pela troika. Essa larga coligação polarizada pela direita em torno da política de austeridade prepara-se para aplicar um programa de destruição económica e de agressão social sem precedentes na história da democracia portuguesa.

Ora é aí, no campo da batalha social e política que fatalmente se vai abrir, e não na intrigalhada torpe, que verdadeiramente se vai decidir o futuro próximo da esquerda e do BE.


E o país?

Na realidade, nenhum economista sério pode afirmar neste momento que a estratégia do acordo imposto pela troika possa permitir o pagamento das dívidas contraídas e a recuperação económica do país. Os juros impostos, os cortes no investimento público, as reduções nos salários e nas prestações sociais, a facilitação dos despedimentos, as privatizações dos sectores estratégicos, os aumentos dos preços dos bens e serviços, o agravamento dos impostos directos e indirectos e o resto que por aí vem, têm um só e seguro tipo de resultados: a recessão, o agravamento do desemprego, a queda do consumo, falências em cadeia de pequenas e médias actividades. Não criando riqueza – e esse é o resultado inelutável desta estratégia de bancarrota – o país não pode pagar a dívida. E recomeçará o ciclo infernal de novas imposições, novos esbulhos, novas e mais graves agressões sociais. Quando daqui a um ano ou dois se acordar para a renegociação da dívida, porque a não podemos pagar, a situação para o fazer será a pior possível. É para aí que fatalmente o Governo de direita, infelizmente com o apoio do PS, encaminha o país. A Grécia é a trágica antecipação do que aqui vai acontecer.

O que nos países da periferia europeia sob a tutela da EU e do FMI se está a passar é uma manifestação brutal e impiedosa de desforra social e de esbulho do capital sobre o trabalho. Visando, simultaneamente, a transferência massiva dos rendimentos do trabalho para o capital e a privatização a preços de saldo dos serviços públicos mais rentáveis.

Significa isto que, nas actuais circunstâncias, a linha divisória entre a esquerda e a direita passa pela atitude a tomar face às políticas de austeridade e bancarrota impostas do exterior. O que vai pôr à prova o BE e as esquerdas deste país é a capacidade de, com base em plataformas de acção comuns, se transformarem numa esquerda plural de resistência e alternativa.


E o Bloco?

Apesar de andar por estas lides já há alguns anos, às vezes não consigo deixar de me surpreender com o que pode ser a ferocidade e a falta de escrúpulos de uma ofensiva manipulatória. A liga dos comentadores especializados no fim à vista do BE empapou os media com o cenário de um Bloco em dramática agitação interna: a massa dos militantes clamando por uma Convenção extraordinária para demitir a direcção, esta apegando-se desesperadamente ao poder e o núcleo dos fundadores em processo de divisão e abandono. Para o arraial da dissolução em curso ser completo, nem faltaram as aventuras e desventuras do Rui Tavares com os Verdes europeus.

Devo dizer com toda a sinceridade que pura e simplesmente nada disto corresponde à verdade. A Convenção do BE realizada em Maio passado definiu por larga maioria a linha política do Bloco e elegeu uma nova Mesa Nacional que se estreou há poucas semanas com o balanço das eleições, o estudo do novo ciclo político e a eleição de uma nova Comissão Política. Ninguém na Mesa pediu uma Convenção extraordinária, muito menos para demitir a direcção cessante do BE. É certo que vozes soltas o fizeram nos media, mas os mesários sabiam que isso equivalia a uma espécie de golpe de mão visando mudar o essencial da orientação política e ideológica do Bloco. E essa não é a vontade largamente maioritária dos seus militantes democraticamente expressa.

Não significa isto que não se tenham pedido, assumido e debatido colectivamente responsabilidades e erros e até aberto um debate de balanço e prospectiva que, aliás, não se vai confinar ao interior da organização mas convocará muita gente para além dela. Não significa isto também, que se desconheça a necessidade de continuar o processo de renovação geracional já iniciado nos órgãos de direcção. Como referiu, e bem, o Miguel Portas em entrevista recente, essa é uma tarefa que se fará ao ritmo que garanta uma renovação sustentada e equilibrada, mas inexorável.
Não posso terminar sem cumprir o dever de desmentir um apresentador do serviço informativo da RTP2 que ontem “informava”, como se de um facto real se tratasse, que dos fundadores do BE só dois (o Francisco Louçã e o Luís Fazenda) se mantinham no BE e na sua direcção. É público que não é verdade. Eu saí do parlamento mas fui reeleito para a Mesa Nacional e a Comissão Política. E lá estou com muito gosto. O Miguel Portas, ao contrário, manteve-se como deputado do BE no Parlamento europeu, mas saiu da Comissão Política. As razões das saídas desses cargos são públicas e nenhuma delas decorre de qualquer dissidência ou desilusão com o percurso do BE. Lamento, pois, informar que afinal não houve dilúvio.

O Bloco faz parte de uma tradição da esquerda que vem de longe e aspira a ir para mais longe ainda, como diz o poeta. Que sabe que esta luta política por mudanças de fundo é um combate prolongado. Onde naturalmente há avanços e recuos, há vitórias e derrotas. Tenho para mim que o BE que ajudei a fundar está no caminho certo e deve ter o sangue frio e a lucidez de não se desviar dele. Se assim for, seguramente o Bloco é um partido com futuro.»
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3 comments:

josé manuel faria disse...

Joana, e se a Convenção fosse adiada para depois de 6 de Junho como deveria ter sido - não faz sentido reunir o partido em plena campanha eleitoral -, teríamos moções A, B, C e D idênticas e compostas pelos mesmos delegados, etc, etc.

- De certeza que a B da qual fiz parte procuraria eleger mais delegados e iria a votos à Mesa Nacional: as circunstâncias (hecatombe eleitoral)alteraria toda a Convenção.

Joana Lopes disse...

José Manuel, eu não faço a menor ideia sobre os motivos de a Convenção do Bloco ter sido realizada antes das legislativas, nem há quanto tempo estava marcada.
Mas concedo que teria certamente sido diferente depois de 5 de Junho...

josé manuel faria disse...

errata: Joana, e se a Convenção fosse adiada para depois de 6 de Junho como deveria ter sido - não faz sentido reunir o partido em plena campanha eleitoral -,não teríamos moções A, B, C e D idênticas às apresentadas e compostas pelos mesmos delegados, etc, etc.