16.7.25

O preço da “abstenção” socialista

 


«Com o entendimento entre PSD e Chega no que há de fundamental na lei da nacionalidade e nas mudanças na imigração, que teve como extra outro no IRS, não faz sentido continuar a falar do “não é não”. Morreu. E, com esta morte, alterou-se o xadrez político.

Até agora, Montenegro fazia um jogo de dupla chantagem, em que atirava para o PS e para o Chega a responsabilidade de qualquer crise política, mesmo que fosse, como foi a última, procurada por si. Com o resultado eleitoral, percebeu que o Chega nunca será punido. Isto poderia levá-lo a entender-se com o PS, mas teme entregar a oposição ao Chega, onde é muitíssimo mais eficaz do que o PS, e insuflá-lo. Por isso, o jogo mudou.

Tudo o que é essencial é negociado com o Chega, sobretudo o que é essencial para o próprio Chega. Onde deveria haver um cordão sanitário, o Chega é o interlocutor, assumindo o próprio PSD, em estilo sempre ligeiramente menos agressivo, a agenda da extrema-direita. Até porque, como já escrevi, esta agenda desvia atenção dos dois grandes falhanços do governo: saúde e habitação. Quando chegar a hora de aprovar a fatura, encosta o PS à parede, responsabilizando-o por uma crise. A postura colaborativa do PS (sem que o PSD esteja disponível para essa colaboração) tornará difícil a Carneiro fazer qualquer corte nessa altura. Teria de trabalhar nesse corte agora.

A estratégia de José Luís Carneiro é esperar por uma crise para pôr as garras de fora. Seja uma crise económica, seja uma crise política por Montenegro ser arguido. Quanto à primeira, se e quando ela chegar, é o Chega que estará preparado para colher os louros. Ventura tem garras que Carneiro nunca terá. Quanto à segunda, acontecerá o mesmo, com a agravante de ainda não ter sido compreendida a escolha de Amadeu Guerra para procurador-geral da República. Quem não percebeu, reveja o papel a que se prestou, com a absurda abertura de um processo a Pedro Nuno Santos nas últimas eleições.

É bom recordar que o entendimento com a extrema-direita não resulta da moderação do Chega. Pelo contrário. Foi o PSD que se aproximou, como se pode verificar neste artigo do Expresso. No passado, o PSD esteve, com mais ou menos discordâncias, alinhado com os mesmos valores do PS nos debates sobre a nacionalidade e a imigração. Até chegar ao governo, o PSD só votou ao lado do Chega uma vez nestes temas. Só no final do ano passado se começou a aproximar da extrema-direita. Até chegar à semana passada, em que o alinhamento se tornou geral, com Montenegro a dizer que o Chega “é um partido que tem apresentado pontos de vista que, de uma forma genérica, se enquadram em mais regulação e mais capacidade de integração”. No essencial, o pacote legislativo do governo integra a agenda do Chega.

Esta clarificação nasce do resultado eleitoral, das vantagens em haver manobras de diversão (que venha o debate sobre as burcas e os “ocupas”) para a ausência de resultados no que é importante e da convicção de que o PS, desta vez, não quer fazer a oposição. Voltou às “abstenções violentas”.

Enquanto se percebia que Pedro Nuno Santos desejava o lugar que os eleitores lhe destinaram (liderar a oposição), era preciso manter a tensão que lhe dificultasse essa escolha (e mesmo assim era sovado por comentadores que agora deixaram o PS, adormecido, em paz) e Montenegro tinha de manter o jogo duplo. Mal o PS se mostrou realmente disponível para um bloco central informal, Montenegro pôde descansar e dedicar-se apenas à relação com o Chega. E o Chega, tendo segura a liderança da oposição e o PS totalmente anestesiado, também se pode entender com o PSD. Não tem de competir com os socialistas.

Muitos acreditavam que se o PS se deslocasse para o centro para dar a mão ao PSD, salvaria a direita democrática. Pelo contrário, a política funciona como um balancé. Ao deslocar-se, o PS contribuiu para acentuar o desequilíbrio, permitiu que o PSD se deslocasse mais para a direita e, ao deslocar-se mais para a direita, normalizou as posições do Chega, tornando mais fáceis os entendimentos políticos. A estratégia defendida pelos falsos amigos dos socialistas levou o PS a anular-se e, com isso, a acentuar a perigosa rampa deslizante a que assistimos. Uma rampa que também influencia as posições do eleitorado. Até os autarcas do PS estão a ser levados nesta avalanche, como se vê em Loures, na Amadora ou em Benavente. Mas isso deixo para outro texto.

Esta posição do PS também contou com o contributo dos resultados dos partidos mais à esquerda, que deixaram de ser um risco no seu flanco esquerdo. O que quer dizer que a única forma de reequilibrar a política seria crescer, como acontece nos EUA, pode vir a acontecer no Reino Unido e aconteceu, no passado, em França e em Espanha, uma alternativa forte mais à esquerda. Por agora, não parece provável. O PCP está em defesa do forte sitiado, o BE está em coma e o Livre não tem implantação social e foco para cumprir essa função. Veremos se as coisas mudam, ou se a via portuguesa será a italiana, em que a esquerda não centrista desapareceu do espaço institucional, o que levou, como não podia deixar de ser, uma figura como Meloni ao poder. Seja qual for o futuro, a normalização do Chega acabou com os problemas da direita. O PSD já não paga, como se está a ver, qualquer preço por se entender com a extrema-direita, mesmo nas questões mais sensíveis. O que devia fazer a esquerda perceber que não tem de salvar quem nunca quis ser salvo. Tem de recuperar o lugar de oposição firme ao governo mais à direita da nossa história democrática. Tão à direita, que nem os valores básicos da fundação do PSD se mantêm intactos.

O papel da esquerda não é fazer oposição ao Chega. Não é tentar manter um cordão sanitário de que não resta qualquer vestígio. É ser a oposição a este governo. Tem até a vantagem de o chumbo do próximo Orçamento de Estado não poder resultar na dissolução do Parlamento. Se a esquerda não cumprir o seu papel, isto vai descambar ainda mais e ainda mais depressa.»


1 comments:

Fenix disse...

O ministro da educação quer promover nas escolas a literacia financeira. Ora, eu defendo que se deve promover a literacia política. Por muito que sinta náuseas por estes jogos, a verdade é que o eleitorado tem que saber discernir o que são os verdadeiros interesses da população e votar em conformidade, pois custa-me a acreditar que o "grosso" que vota na direita e até no PS estejam conscientes do impacto do seu voto...