26.7.24

Elogio da política

 


«É uma dança macabra. Ao ritmo das exigências mediáticas, as figuras dos principais partidos rodopiam para justificar e enquadrar a sua “atitude responsável” face ao orçamento. No contrapasso, à espera de uma qualquer novidade, artigos de jornal e sucessivos diretos dão nota das grandes intrigas ou dos pequenos deslizes dos protagonistas. Mais para o final da semana, comentadores e cronistas criticarão os políticos pela superficialidade do debate e, claro, por sucumbirem à politiquice. Assim é, de facto, mas para dançar o tango são precisos dois.

A meses da apresentação do documento, a política nacional está capturada. Dia após dia, sucedem-se as mesmas questões. Quem aprovará o próximo orçamento? A troco de quê? Da direita a parte da esquerda, todos querem estar na fotografia: ensaia-se um suspense “praticamente impossível” sobre o voto para mostrar “disponibilidade negocial”. A barganha orçamental horroriza-se com as diferenças ideológicas e dispensa grandes mundivisões. Encara com naturalidade que qualquer partido, de qualquer espectro político, o Chega ou o PS, viabilize o projeto da direita.

Haverá quem pense que esta foi a forma de governar inaugurada em 2015. Engana-se. A geringonça foi um acordo há quatro anos, entre forças que negociaram longamente e assumiram objetivos partilhados, claros, ainda que limitados no tempo e no modo. O entendimento não foi renovado em 2019, quando a falta de coincidência entre projetos políticos inibiu novos acordos.

É estranha e perigosa a ideia de que a participação dos partidos no processo orçamental só existe se houver negociação para viabilizar o documento. Não tem de ser assim e não deve ser assim. Essa visão reduz o trabalho parlamentar a uma guerra de claques — e, se for para isso, já há uma bastante ruidosa. Mais bizarro ainda é a tentativa de imposição de um novo senso comum, que naturaliza o apoio a uma governação de sentido oposto, desde que haja “sucesso na negociação” de meia dúzia de propostas a incluir ou excluir.

Não quero ser mal interpretada. É claro que o Parlamento é um lugar para procurar aproximações e até consensos: eles acontecem todos os dias, com geometrias diversas, sobre os mais variados temas. Mas o Parlamento na democracia é, antes de mais, o lugar de comparência das alternativas políticas, onde se confrontam ideias e mundividências. Uma democracia composta por versões aproximadas do mesmo algoritmo perde potência, desvitaliza-se, torna-se uma câmara corporativa, uma arena para a alternância de interesses, sugerindo que uma alternativa só pode sê-lo contra a própria democracia. Se “não há alternativa”, não há política. Se não há política, só sobra politiquice.

O programa do PSD, que o governo já recusou “desvirtuar” no Orçamento, carrega uma visão ideológica, política e cultural sobre Portugal. Carrega essa visão sobre o papel do Estado, sobre o trabalho, sobre a redistribuição de riqueza, sobre a organização da economia e sobre os direitos sociais. Não é apolítico, como nada é. É um programa de uma direita neoliberal. E tanto cumpre algumas promessas eleitorais de caráter social (apresentadas como “medidas de pacificação social”) como executa elementos da política para a imigração da extrema-direita. As escolhas já consumadas para privatizar a saúde, para abdicar estruturalmente de receita fiscal em benefício dos mais ricos ou para liberalizar o alojamento local não são business as usual. São medidas que deixarão marcas profundas no país, na economia, na vida das pessoas que partilham Portugal.

O impasse em que muitas democracias ocidentais estão enredadas não é circunstancial e não será solucionado por fracos arranjos temporários de geometria parlamentar subordinados às conveniências de calendário de lideranças partidárias. Neste difícil contexto histórico, o risco é mesmo a falta de escolha, por força da naturalização do programa ideológico da direita, pela diluição do confronto na coreografia inconsequente e pela descredibilização das políticas transformadoras de esquerda.

Perante tudo isto, “quem aprovará o orçamento?”. A pergunta é crucial, mas não pelas razões que embaraçam protagonistas e entretêm cronistas e comentadores. Não é conversa de políticos, é a política de um país.»


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