«Primeiro, a justiça: se excluirmos a política externa, onde Gaza tem um papel cimeiro de incompetência e cobardia, mas onde também teria de recuar muitas décadas para me lembrar do último bom presidente norte-americano, Joe Biden foi um bom presidente. Mais progressista do que Obama (seguramente muito mais do que Clinton), não é por acaso que a esquerda do partido democrata queria a sua continuidade. Quantos presidentes estiveram em piquetes de greve?
Com piores condições políticas internas, tem um currículo de vitórias muitíssimo mais impressionante do que Barack Obama (no preço dos medicamentos, nas dívidas dos estudantes, no aumento dos salários dos trabalhadores mais pobres, para pegar em três exemplos), o que lhe valeu alguns ressentimentos. Mas, pela sua idade, Biden era um presidente de transição e não conseguiu ter a lucidez de sair quando devia. E ninguém o fez ver que tinha de sair. E ninguém de peso decidiu avançar contra ele, nas primárias.
É bem possível que a desistência de Joe Biden não venha a tempo. Mas as eleições estavam perdidas e só uma mudança rápida poderia fazer renascer uma ténue hipótese de vitória democrata. Nenhuma alternativa para além Kamala Haris tinha a capacidade de vencer três obstáculos: a transferência de fundos recolhidos por Biden (nos EUA, o dinheiro compra vitórias), ter notoriedade em todo o país (que é imenso e onde as primárias funcionam como pré-campanha) e não levantar questões de legitimidade política (resolvidas pelo facto de ser a vice-presidente de Biden). Uma escolha totalmente fora disto, para provocar uma surpresa e uma onda de entusiasmo, chocava com estes três obstáculos. E perder tempo a falar delas é enfraquecer a alternativa a Trump que subsiste.
Não vale a pena ter ilusões. Kamala tinha melhores sondagens do que Biden, mas ainda sem ter enfrentado a máquina de propaganda tóxica republicana, em que a misoginia terá lugar central. Ela junta todos os problemas de uma candidata liberal e de minorias, tendo poucas das suas virtudes: parece bem mais progressista do que é, está colada a causas minoritárias sem se ter batido assim tanto por elas. Tem algumas vantagens, como a possibilidade de recuperar eleitorado negro que estava a abandonar os democratas – por ser mais pobre, sofreu a mais com a inflação. Mas dificilmente vencerá no “Rust Belt”, onde Trump e Biden conquistaram as eleições em 2016 e 2020. Para compensar isto, a escolha do vice (o governador da Pensilvânia Josh Shapiro, por exemplo) pode ser determinante, sobretudo quando enfrenta J.D. Vance.
Kamala não é uma solução excelente mas as coisas são como são e as oportunidades para serem diferentes já se esgotaram. Agora, é unir forças, não perder tempo com outras possibilidades e tentar vencer o que parece estar perdido.
Este Trump não será, como já escrevi, o do primeiro mandato. Não será o Trump que ainda prestava contas aos restos já de si transfigurados do partido republicano. Este é o Trump que escolheu J.D. Vance como número dois. É o Trump da vingança que a maioria do Supremo que ele próprio nomeou declarou inimputável. Este é um momento incrivelmente perigoso para o mundo. Já se falhou quase tudo. Que não falhe o tão pouco que resta.»
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