«Ao ritmo da política em direto, somos testemunhas diárias de “momentos históricos”. Mas vamos arriscar. Vamos imaginar que a bala que raspou a orelha de Trump será o marco do começo de uma nova era e que a fotografia deste momento, tão semelhante à de “Raising the Flag on Iwo Jima”, será o seu ícone. Não é o pequeno episódio protagonizado por um jovem perturbado que muda a História. A mudança segue o seu caminho há muito tempo. A imagem apenas a fixa no tempo. Num país que espera heróis, um Trump ensanguentado levanta o punho e quase parece segurar a bandeira americana — “lutem”. Num país que ouve profetas, o homem providencial “leva uma bala por nós” e é salvo por Deus para restaurar os valores americanos em declínio. Num país feito por pioneiros, um Trump enérgico na defesa dos valores de uma “América deixada para trás” enfrenta todos os interesses representados por um Biden decadente. Os tribunais quiseram prendê-lo, os jornalistas quiseram destruí-lo, os democratas roubaram-lhe a eleição, agora quiseram matá-lo. É tão perfeito que alguns se recusaram a acreditar que foi capricho do acaso.
Como sempre, não há um momento para o começo de uma nova era. Trump até teve um primeiro mandato, interrompido pelo desastre da gestão da pandemia. A extrema-direita cresce e vence em muitos países há muito tempo. Mas, neste arriscado exercício de adivinhação, vamos assumir que Trump vencerá as próximas eleições. Tudo se encaminha para isso. O Presidente, diminuído e pressionado pelos seus apoiantes para desistir, perdeu o discurso. Os democratas tiveram de retirar a campanha negativa contra um candidato condenado e julgado pelo seu papel numa tentativa de golpe. Biden teve de mostrar solida-riedade com quem fez piadas à agressão quase mortal ao marido da líder do Congresso. E, enquanto Trump vai anunciando que, se perder, haverá sangue, instala-se o discurso de que “ambos os lados” escalam a violência e que tratar Trump como um homem perigoso para a democracia é ser cúmplice de uma tentativa de homicídio.
Assumindo que Trump ganha, não devemos assumir que o segundo mandato será do Trump que conhecemos. Será, permitam-me mais adivinhações, uma nova coisa. Arrisco-me a dizer: uma coisa completamente diferente. Enquanto prometia unir o país contra o discurso divisivo e agressivo dos democratas, Trump anunciou o seu novo programa em forma de pessoa: J. D. Vance, candidato a vice-presidente. Um corte definitivo com a história de um Partido Republicano já desfigurado. Mike Pence era tenebroso, mas no seu último suspiro político impediu o golpe. Vance garante que, no lugar dele, não teria validado os resultados eleitorais, confirmando o golpe instigado pelos ocupantes do Capitólio.
A ascensão fulgurante de J. D. Vance, que chegou ao Senado há dois anos, só tem paralelo com a de Obama. Também coincidem na capacidade de construir narrativas políticas a partir dos seus percursos familiares. Vance é o “sonho americano”: jovem pobre vindo de uma família disfuncional, salvo pelos avós, um deles operário metalúrgico e democrata sindicalizado, chegou, depois de algumas histórias mal contadas, à alta roda dos homens de Silicon Valley, a nova aristocracia capitalista que lhe dá apoio e que ele representará, e ao topo da política. Vance conhece a linguagem, os anseios e as frustrações da classe trabalhadora branca abandonada pela desindustrialização. O seu livro de memórias, “Hillbilly Elegy”, fala da desintegração das estruturas familiares tradicionais e das comunidades que essa desindustrialização provocou. Foi um sucesso quando Vance ainda suspeitava que Trump pudesse vir a ser o “Hitler americano” que levaria a “classe branca trabalhadora para um lugar demasiado negro”. Vance fala para os eleitores do rust belt. Os que decidiram a vitória de Trump em 2016 e de Biden em 2020.
Mas não são estas contas que entrarão na História. É o que a escolha de Vance nos diz sobre a transformação de um projeto megalómano de um milionário narcisista num projeto com densidade ideológica. Vance quer transformar o Partido Republicano num partido revolucionário. Acredita que os EUA vivem “um período republicano tardio”, numa alusão de Roma à espera de um novo César: “Se vamos reagir a isso, temos de ser bastante selvagens e ir bastante longe, em direções desconfortáveis para muitos conservadores.” É ele que diz que muitos dos seus aliados defendem uma resposta que até pode ser “extraconstitucional” a um mundo dominado por uma esquerda que põe em causa os valores americanos. É um novo Orbán, émulo de Putin, que Trump, com 78 anos, apresenta como seu vice.
Parece impossível travar a caminhada imparável da História, de que a imagem ensanguentada de Trump, com a inevitável bandeira atrás, surge como símbolo inaugural. É possível que vivamos o ocaso da curta experiência democrática da Humanidade. Resta a esperança que nasce de se saber que a História nunca está escrita e que quase todos os exercícios de adivinhação falham. Pequenos episódios podem mudar tudo. Mas a esperança na sorte do destino é a dos derrotados.»
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