«Podia-se assumir que, chegado um novo Governo, os mandatos dos cargos de nomeação política interrompem-se para dar lugar a pessoas da sua confiança. Não é a tradição das democracias mais maduras — mesmo em Portugal, tivemos o mesmo diretor-geral de Saúde com Sócrates, Passos e Costa —, onde confiança não se confunde com cartão partidário, mas ao menos seria claro. Até porque, se um Governo nomeia com critérios partidários, é difícil o seguinte não manter o círculo vicioso. Mas, seja qual for a razão para substituir quem está à frente de serviços, há regras básicas: respeito profissional e clareza nas motivações.
Primeiro episódio. A competência de Fernando Araújo nunca foi posta em causa. Nem pode ser acusado de partidocracia, já que a sua primeira nomeação, para o maior hospital do país, foi Ana Paula Martins, militante do PSD e ex-vice de Rui Rio. Já a nova ministra demitiu-se do cargo que ocupava alegando oposição à reforma do SNS para, na realidade, poder ser candidata pelo PSD às legislativas. Chegada ao ministério, não podia dizer que Araújo estava ao serviço de um partido (até a nomeou) nem que era incompetente. Usou o acinte, escrevendo uma carta a exigir um relatório em 60 dias que chegou aos e-mails do diretor-executivo e das redações no mesmo dia. Este tipo de exibição de poder talvez explique as revoltas que marcaram a sua passagem pelo Santa Maria. Mas teve o efeito desejado: Araújo e a sua equipa saíram, prescindido das indemnizações. A falta de civilidade tende a contar com o civismo das suas vítimas. Não sabemos da bondade da maior reforma do SNS desde a sua fundação porque nem se deu tempo para que produzisse efeitos. Num país de capelinhas corporativas, as opiniões mais firmes não desejam ser contrariadas por resultados. Espera-se apenas coerência: quem quer um corte com a continuidade não pode exigir o apoio do partido da continuidade. Se nem com os mais competentes que o PS nomeou conseguem trabalhar...
Segundo episódio. Em reunião, a ministra do Trabalho e Segurança Social transmitiu a Ana Jorge o desejo que continuasse no cargo. Mas exigiu-lhe um plano de reestruturação em 15 dias, sabendo que foi esta provedora que, em 11 meses, destapou e denunciou o buraco da internacionalização, teve de lidar com litígios por causa desse processo e desenvolveu medidas de contenção de custos e valores de contratos, não renovações automáticas de protocolos, redução de cargos de chefias, numa estrutura de que dependem inúmeros serviços e que depende de um negócio em crise. Ana Jorge disse que era impossível atender a uma exigência que, na realidade, apenas serviu de pretexto para a sua exoneração. Semelhante ao que foi feito a Araújo, acrescentando um comunicado que a responsabilizava pela situação que herdou de Edmundo Martinho. Só que foi ela que denunciou, mandou auditar e enviou para o MP a catastrófica tentativa de internacionalização do jogo, expondo, sem receio, um correligionário político.
O terceiro episódio está a preparar-se quando escrevo este texto, fabricando uma polémica sem história. Foi determinada, como sempre, uma taxa de IRS provisória para 328 mil reformados. Depois, como habitual, ela foi atualizada. 143 mil vão receber menos porque foram beneficiados antes das eleições e 185 mil vão receber mais porque foram prejudicados. A acusação de eleitoralismo é absurda. Para mais de metade seria eleitoralismo ao contrário. Mas tudo se encaminha para criar um ambiente propício à exoneração da presidente do Instituto da Segurança Social. E já se percebeu que a Agência para a Integração, Migrações e Asilo vai ser o quarto episódio. É natural que um governo decida quem mantém e quem substitui. Mas, como não está instituído que os dirigentes ponham os seus lugares à disposição e os mandatos não estão ligados às legislaturas, espera-se que cheguem ao fim. Ao contrário do que tenho ouvido, é suposto as exonerações serem excecionais.
À hora a que escrevo, não sei se será Pedro Mota Soares a “devolver credibilidade à gestão da Santa Casa” — quando era ministro, fez 14 nomeações definitivas, todas de militantes do PSD e do CDS, para as direções dos centros distritais da Segurança Social. No ecossistema do centrão, estes cargos de topo são importantes para distribuir jogo pela clientela. Sejam candidatos a assessores e a funcionários, ou IPSS e empresas à espera de acordos e negócios. E para resolver guerras políticas: a Câmara de Lisboa, que depois da proeza de produzir um buraco financeiro no. meio de um dilúvio de dinheiro do turismo e do imobiliário tem pouca autoridade para falar de gestões alheias, quer ter a tutela das decisões da Santa Casa e esteve intensamente envolvida nesta exoneração. Para todos, há uma rede de empregos, contactos, parcerias e negócios a tratar. Não é novo, mas a pressa é maior. Ao fim de oito anos, a fome é cega. E nestas periclitantes circunstâncias políticas, ninguém quer esperar para saber quanto tempo terá para o assalto ao Estado. A janela de oportunidade pode ser curta, a confiança no futuro não é assim tão grande e não dá para deixar que os mandatos acabem.»
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