30.11.24

A perda das duas culturas

 


«Este ano já fiz mais de cento e dez intervenções, inaugurações, debates, conferências, visitas guiadas, desde Monforte à Barragem de Picote, o que não é vida que se recomende a ninguém. É certo que é um ano especial, por causa do aniversário do 25 de Abril, mas, mesmo depois da data, continua, continua, continua. Há uma vantagem, talvez possa falar com algum conhecimento de causa sobre o que se está a perder, porque muitas dessas andanças foram conversas em escolas do ensino secundário onde contactei com milhares de alunos. Sim, milhares, em escolas de zonas pobres a colégios da elite, o que faz enorme e evidente diferença. Parte da conversa com este público, provavelmente o mais difícil de todos, foram perguntas minhas, por curiosidade e para saber o terreno que pisava. E, se já não tinha muita esperança de que soubessem quem era Aquiles ou Minerva, ainda não tinha a noção de que muitos não sabiam quem são Adão e Eva, e quando os nomes lhes diziam alguma coisa era como “os primeiros seres humanos”.

A questão é que há uma perda acentuada das duas fontes fundamentais da cultura ocidental, a nossa cultura. Podemos chamar-lhe o que quisermos se o termo “ocidental” parece inquinado, e, nesta época de ilusão multicultural, nomear outras “culturas”, submetidas, escravizadas, ignoradas, minimizadas, tudo o que se queira. Mas a “outra” continua a ser mais a nossa, a dos homens e mulheres, na sua maioria brancos, mas não só, europeus e americanos, que criaram uma “civilização”, outro termo ambíguo, que todos sabemos transporta enormes violências e iniquidades, mas sem a nomear como superior, nem lhe atribuir sentido valorativo, não deixa de ser a “nossa”. No modo como as coisas estão e o intenso policiamento da linguagem e do pensamento, bem podia prescindir desta introdução preventiva, que, aliás, não vai servir para nada.

A “nossa” civilização repousa em dois pilares culturais e históricos: a cultura greco-latina e a cultura bíblica, ambas com uma história comum. Ambas fizeram-nos como somos, moldaram as instituições como moldaram a nossa cabeça. Pode-se contestar que faltam outras componentes como a cultura da ciência, ou a cultura política da democracia, mas ambas entrelaçam-se de tal maneira na tradição “ocidental” que são produtos mais do que fundação.

Mas qual é o problema de não saber essas coisas “antigas”, cuja “utilidade” nos nossos dias é entendida como escassa ou estar substituída por outras “competências” ou “literacias”? Tudo e todo. Começa com a circunstância de que quem não conhece minimamente a mitologia clássica ou as histórias da Bíblia, em particular o Antigo Testamento, debilmente lê qualquer grande clássico da “nossa” literatura, de Shakespeare a Tolstói, ou em português de Camões a Eça. Verdade seja, que já hoje pouco se lê, mas, mesmo assim, há um enorme prazer, e uma enorme “ilustração” em ir um pouco mais além do que uma leitura pobre, que é quase sempre por obrigação e é esquecida no dia seguinte. Nós precisamos de histórias, de metáforas, de rimas, de poemas, de simples frases, de memórias, ou de imagens e iconografia, para vermos o mundo à nossa volta com algum acrescento e sermos melhores, mais capazes, mais senhores de nós próprios. A cultura não garante imunidade contra a crueldade, sabemos pelas bibliotecas de Hitler e Estaline, que eram homens cultos, mas mesmo do ponto de vista do mais comum dos homens mais vale tê-la do que não tê-la. A miséria é obviamente a grande inimiga da cultura dos homens comuns, que são duplamente pobres, mas, mesmo aí, as figuras que os anarquistas e outros rebeldes iam buscar para simbolizar a luta incluíam Espártaco ou o carpinteiro José e os pescadores apóstolos.

A miséria foi a grande inimiga da cultura, de toda, a antiga e a moderna, mas nos dias de hoje há outras formas em crescendo do obscurantismo, em particular as formas modernas de ignorância agressiva, ligadas à educação pelo lixo, pela cloaca das redes sociais, associada à perversão do tempo rápido, do ruído, da velocidade afectiva que gera o défice da atenção, que molda as crianças e os “jovens”, que vão até aos 35 anos, nos ecrãs pequenos, na absoluta presencialidade dos telemóveis, numa sociabilidade entre os likes e o bullying. A escola, que devia resistir, submete-se pelo facilitismo e pela moda.

Claro que assim Ulisses nunca chega a Ítaca, nem nenhum anjo trava a mão mortífera de Abraão. Qual é o problema? Na verdade, nenhum. Voltem para a cultura dos insultos nos comentários, a acreditar que há uma correlação entre os abortos e as tempestades, e que os haitianos comem os cães e gatos de companhia. Está visto que tudo isto não impede ninguém de ganhar uma eleição.»