31.10.24

Os tumultos e a lição de Isaltino

 


«Não tenho qualquer admiração política por Isaltino Morais. Acho, e já o escrevi várias vezes, sintomática da falta de exigência ética a sua reeleição, depois da condenação judicial de que foi alvo. Tenho inúmeras críticas a fazer à forma como governa Oeiras. Mas o texto que escrevo hoje é para elogiar o comportamento exemplar que teve numa crise que também bateu à porta do seu concelho. E não precisava. Oeiras tem o eleitorado mais abastados do país, ele nem precisa dos eleitores destes bairros.

Não estou a falar de declarações mais ou menos sóbrias, com valores que pessoas decentes partilham. Isso houve muitas, apesar de demasiado tímidas e temerosas. Estou a falar de uma tentativa empenhada e consequente de deitar água na fogueira. De ser realmente o anti-Ventura sem sequer o ter de o mencionar.

Perante as câmaras, Isaltino criticou o alarmismo mediático, explicou que a polícia não ia entrar nos bairros à bordoada, respondendo às provocações de uma minoria, porque o objetivo era pacificar não acrescentar violência à violência. E é interessante como, por pura autodefesa corporativa, o seu discurso pacificador e responsável, numa altura em que tudo podia ser uma acha para uma fogueira perigosa, incomodou mais os jornalistas que recolhiam o seu depoimento do que todos os incendiários que passaram pelos estúdios das televisões.

Já nem o comparo com Ventura, obviamente. A sua intervenção foi bem diferente da de Carlos Moedas, que fez paralelos com Paris e aproveitou o momento para voltar ao disparate de querer ser um xerife local, pedindo poderes que a polícia municipal não pode nem deve ter. Se funcionar tão bem como a recolha do lixo ou a generalidade dos serviços que tem sob sua alçada, ninguém dará pela diferença.

A diferença não resulta do nada. Isaltino Morais conhece o seu concelho como a palma da sua mão. Todos os bairros. Por isso foi o único que andou na rua enquanto outros comentavam ao longe. Só não entrou logo nos bairros porque a polícia, naturalmente, não deixou. Foi o único titular de cargo executivo a comparecer no velório de um cidadão que, seja qual for a conclusão do inquérito, foi morto pelo Estado. Isaltino até se deu ao luxo de fazer, na Assembleia Municipal, um minuto de silêncio por Odair Moniz sem temer o deputado municipal do Chega, que em mais uma demonstração de desumanidade, deixou-se sentado para mostrar quanto desrespeita aquela vida perdida.

A prova de que, ao contrário do que muitos pensam, isto vai para lá da esquerda e da direita, é ver o presidente da Câmara de Loures e líder da Federação de Lisboa do Partido Socialista, que, substituindo-se aos tribunais, aprovou uma recomendação do Chega para despejar quem tenha estado envolvido em tumultos, uma medida ilegal e inconstitucional (autarquias não se podem aplicar sanções acessórias que nem estão previstas na lei), como sabe quem nem sequer pretende mais do que a notícia para o voto fácil. E que penalizaria os familiares do criminoso.

A diferença é simples: Ricardo Leão, ao contrário de Isaltino Morais, é uma inexistência política. Tem de falar grosso e aliar-se à extrema-direita para as pessoas saberem que é autarca e, nas eleições, talvez votarem nele. É a diferença de quem lidera ou vai na onda. Lidera quem pode, vai na onda quem não tem outro remédio.

Isaltino não precisa da notoriedade construída na comunicação social. Vive de outra. Por mais crítico que eu seja dos seus métodos, não é do departamento de comunicação e da presença em tudo o que possa ser mediático que vem a sua popularidade. Vem de um trabalho que, mal ou bem, os munícipes valorizam. E vem do conhecimento profundo do terreno. Incluindo nos bairros, onde entra e o estimam. Aqueles munícipes não são umas personagens que vê na televisão ou lhe aparecem em relatórios. Não tenho parado de ouvir histórias de como aquele branco de charuto é estimado nos bairros mais pobres. Alguns põem o seu nome aos filhos. Também é seu presidente da Câmara.

Isaltino Morais não é lição em muitas coisas. Mas foi uma lição na semana passada. E até pode ser que isto resulte do facto de ser um cacique. Pelo menos, será cacique para todos, não ignorando uma parte da população. E será um cacique corajoso, não temendo ser próximo dos que são desprezados por boa parte da população.

Não estou apenas a dizer que se um político fizer um bom trabalho não precisa de cavalgar tragédias. Quem dera que assim fosse. Até porque, como disse, sou crítico de muitas das opções políticas de Isaltino. Estou a dizer que quando um autarca desenvolve relações de proximidade com as populações não precisa do espetáculo mediático. E, como sabe de quem fala, ganha o que faltou nestes dias: empatia. Isso estraga, claro está, o espetáculo mediático. Mas faz bem à sociedade.»


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