28.10.24

Uma cidade, uma democracia e uma lei de todos e para todos

 


«Tudo estava encaminhado para correr mal. A Câmara Municipal de Lisboa, por negligência ou pior do que isso, permitira que a marcha do Chega, marcada fora de prazo, acabasse no local já reservado pela “Vida Justa”. A PSP publicou, no antigo Twitter, um cartaz que não podia ser mais desadequado para a mensagem necessária para o fim de semana que vinha. Em vez de uma imagem civilista, que sublinhasse a diversidade da corporação, dois policias com capacetes, cara tapada, fundo negro e a frase "Pátria e Ordem", que os ativistas de extrema-direita partilharam como se fosse campanha sua.

A PSP entrou, como todas as corporações entram em momentos como este, em modo de autodefesa. Há tanta gente a dizer que temos da acreditar na palavra da polícia. Numa investigação deste género, não sei se é ingenuidade, se má-fé. Em democracia, todas as instituições são escrutinadas por outras exatamente porque não confiamos totalmente em nenhuma. Porque elas feitas por humanos.

Os humanos que dirigem a PSP lançaram dois jovens com pouco mais de 20 anos para um cenário inapropriado para a experiência que têm, sem taser e com medo e uma arma na mão. Basta ver as imagens dos dois polícias, quando não fizeram manobras de salvamento à vítima, para perceber o pânico e o choque. Que o diretor adjunto tenha dito que se têm treino básico podem estar em qualquer cenário diz bem da negligência como tudo isto é tratado. Na opinião da cúpula da PSP, a experiência não conta, ao contrário do que sucede em profissões com muito menor responsabilidade.

Também terão sido os chefes destes homens a achar boa ideia divulgar que Odair empunhara uma faca contra os policias e que deixaram que a tese o carro roubado corresse por mais de dois dias. E foi a cúpula da PSP que, depois dos acontecimentos de 2015, não percebeu que tinha de fazer uma revolução na esquadra de Carnaxide e, em vez disso, manteve os condenados ao serviço.

O jovem polícia pode vir a ser acusado e condenado, mas não deixa de ser uma vítima da incúria das cúpulas da PSP. E elas não deixarão de se proteger. Não hesitando, como já se percebeu, em mentir. E até em recorrer a uma retórica e uma estética que se esperam em partidos radicais, não em forças civis de segurança.

A “Vista Justa” mudou o destino da manifestação, mostrando ser a única organização responsável neste processo (talvez por ser a única que nada tinha a ganhar com a violência) e impedindo o encontro, na mesma praça, de militantes do Chega e aquelas a que chamam "rascaria". O facto de milhares jovens das periferias que tinham direito legal e prioritário ao uso da praça em frente à casa da democracia serem obrigados a ceder a o lugar a 200 militantes de um partido racista funciona como metáfora.

Estive na manifestação de sábado. Os jovens dos bairros organizaram a segurança, impedindo o contacto dos manifestantes com uma polícia em quem não confiam. Tirando um ou outro cartaz, o ambiente não podia ter sido mais sereno, exigindo justiça, não vingança. Da cidade que os pais constroem e as mães limpam, vieram os brancos que acreditam que o direito a ela é de todos. “Nu sta djuntu, nu sta forti” (“estamos juntos, estamos fortes”), gritado em crioulo, era repetido por brancos que nem falam a língua. Não, não esteve ali uma sociedade diversa e tolerante. As duas cidades misturaram-se, mas não se conheciam. Mas o encontro era político e, por isso, genuíno. Não em torno de uma proximidade artificial que não existe no quotidiano, mas de valores constitucionais e democráticos.

Graças à organização do “Vida Justa”, e só a ela e àqueles jovens, a manifestação chegou ao fim sem qualquer problema. E isto fez mais pela paz social, pela “ordem” ou até pela “pátria” do que qualquer competição de testosterona entre políticos. Porque a pedagogia da democracia é sempre autoministrada. É feita pela própria experiência democrática. Neste caso, de um protesto pacífico que mereceu o olhar de toda a comunidade através da comunicação social.

Até sábado, os que pouco ligaram à vigília no Bairro do Zambujal, ainda antes de qualquer tumulto, passaram dias atrás de caixotes de lixo que ardessem. Até no dia do funeral, o Presidente da República dedicou mais palavras ao pedido de serenidade do que às condolências. Morram, mas sem barulho. Diferente, em toda esta crise, esteve Isaltino Morais, que foi ao velório. No dia do funeral, sem qualquer perturbação, as televisões não resistiram a enquadrar os seus diretos com os restos dos tumultos. É uma adição a que não conseguem fugir.

Para a democracia vencer é preciso que todos sintam que é coisa sua. Que têm direito à cidade. Foi apenas um sábado, claro. Mas não foi só uma manifestação. Foi um momento histórico para quem ainda luta para ter acesso à democracia. Para quem luta pelo direito ao pequeno erro, aquele que é tolerado a todos os que enchem o peito contra a “bandidagem”, sem correr risco de ser abatido.

A lei é para todos. É para Odair Moniz, que não tinha de morrer por ter fugido a uma operação stop. É para o polícia que tirou uma vida sem que isso fosse absolutamente indispensável. É para os que feriram motorista da Carris. É para o Tiago, vítima inocente do vandalismo. É para os que nas redes sociais instigaram aos tumultos e que a PSP jura procurar. E é, como exigem mais de 120 mil cidadãos, para André Ventura, Pedro Pinto e Ricardo Reis, que instigaram ou fizeram a apologia do homicídio de cidadãos pela polícia. A lei tem de ser como a cidade: para todos.»


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