«Os EUA são um grande país, mas estão doentes por dentro. Bastante doentes. Trump acaba de dizer que a “estúpida” e “pouco inteligente” (o insulto preparatório para coisas mais graves que ele hoje diz) Liz Cheney é uma belicista que devia experimentar ter várias armas a disparar contra a cara dela. O Politico, um site noticioso, interpretou essas armas a disparar como sendo um pelotão de fuzilamento, o que é talvez institucionalizar aquilo que é na frase de Trump um fuzilamento “informal”, chamemos-lhe assim, um assassínio.
Vai acontecer alguma coisa? Duvido, ele diz coisas destas todos os dias, e não perde, que se saiba, metade dos americanos como eleitores, nem que a máquina de minimização da importância do que ele diz funcione em pleno, até em Portugal, nas mais altas esferas do poder. Na direcção do PSD, no CDS e no Chega, há quem esteja “hesitante” se devia votar em Trump. O que significa que, se votassem, votariam.
É a doença dos EUA – sim, porque votar em Trump significa ser cego, surdo e mudo, cruel e violento, e não me venham com o aumento dos custos da mercearia, porque o voto em Trump transporta muitas outras coisas, e quem vota sabe.
Tudo isto é um bom exemplo de várias coisas que são muitas vezes polémicas no trabalho da história, no seu duplo sentido, no modo como funciona aquilo a que chamamos história; e nos debates dos historiadores sobre esse movimento dos acontecimentos a que chamamos história. As polémicas, já com séculos, sobre o modo como funciona a causa-efeito na história, sobre o papel dos ciclos económicos, sobre se os indivíduos — seja Napoleão, Hitler ou Trump, sejam as personagens carismáticas em geral (no sentido genuíno da muito abastardada classificação de carisma) — têm no movimento da história, ou se ela deve ser interpretada essencialmente por aquilo a que os marxistas chamam “infra-estrutura”. De Taine a Marx, isto sempre se discutiu.
Trump parece ser um exemplo de como os indivíduos moldam a história introduzindo um factor subjectivo na sua interpretação, e reforçando o papel do acaso na evolução da história. Não são “forças impessoais”, sejam as da teoria marxista da história, sejam outras interpretações hegelianas da existência de uma seta direccional, que define cada momento como uma etapa face a um fim último, que seria a “sociedade sem classes” ou, em autores cristãos como Teilhard de Chardin, o “ponto ómega”, ou seja, o fim do mundo e o julgamento final. A história terminaria aí, mas o sentido teleológico interpreta cada momento como um passo à frente ou atrás em direcção a esse fim. Quando Trotsky foi colocado no “caixote do lixo da história”, essa noção de que haveria um “lixo” tinha que ver com a distinção que todas as teorias com origem em Hegel implicam: há os que estão no curso do sentido da história e os que já perderam esse caminho para o futuro.
Em história, não acredito em qualquer sentido, muito menos “progressista” do seu curso. Considero que o factor do acaso é preponderante, e isso faz-me aceitar o papel das personalidades como “criadoras” da história. Sem elas, a história teria outra direcção, do mesmo modo como acontecimentos ocasionais que surgem de repente têm o mesmo efeito. A pandemia da covid-19 é um bom exemplo. Podemos saber, porque a história está cheia de pandemias, o que as causa e como funcionam socialmente, mas não sabemos quando aparecem e como a sociedade reage a elas.
O que torna Trump parecido com Augusto, Napoleão ou Hitler não é a comunidade de ideias, algumas sim, outras não, em tempos muito diferentes, mas a sua capacidade intuitiva de criar, de mudar os termos da sua evolução pela sua própria acção, de ser carismático.
As personagens carismáticas nunca foram boas para as democracias. Os gregos, que sabiam disso, exilavam à força, “ostracizavam”, os generais que ganhavam as batalhas e se tornavam famosos; logo, perigosos para a igualdade do povo que no Pnyx votava tudo, da guerra e da paz à justiça. As democracias actuais não “ostracizam” ninguém, mas também não deviam permitir que alguém que é um criminoso, que despreza as leis e a Constituição, que corrompe e é corrompido pela vaidade pelos inimigos da democracia como Putin tenha condições para se candidatar. Reparem que eu, como extremista da Primeira Emenda, não me refiro às suas declarações, mas aos seus actos.
A complacência com os crimes de Trump, o medo que ele inspira, os poderosos apoios interesseiros que fecham os olhos a tudo para ganhar dinheiro e poder manietaram a justiça americana e permitiram-lhe uma impunidade que ninguém deveria ter. Trump, que é contra a democracia, beneficiou das fragilidades da democracia, usando três coisas: a manipulação da política-espectáculo, hoje uma das maiores ameaças à democracia; o dinheiro para pagar uma litigância infinita e para corromper testemunhas e processos; e o medo da retaliação e vingança que ele promete como quem respira. Na minha interpretação da história, Trump é o mais importante, e o seu carisma “cria” os seus seguidores. Podemos interpretar mil e uma coisas sobre o que lhe dá apoiantes, mas, antes disso, está perceber porque aceitam tudo o que ele diz e faz, e isso está antes, modela os acontecimentos, cria o movimento MAGA.
Estou a escrever este artigo na Trumplândia, e não é preciso ir muito longe para ver o medo. Nas campanhas eleitorais anteriores, os jardins em frente às casas estavam cheios de cartazes apoiando um ou outro candidato. Agora, nada. Há medo de vandalismo, de todos os lados. Medo de americanos contra americanos.»
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