8.3.23

Conferência Episcopal – a miséria moral que pede Estado

 


«A Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de crianças na Igreja Católica Portuguesa (CI) constituiu-se após um convite dirigido a Pedro Strecht, no final de 2021, por parte de José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP). Sabemos que não foi fácil, sabemos que a Igreja foi empurrada para o inevitável, para aquilo que foi feito em tantos países.

A equipa é exemplar e a sua composição bem conhecida. Este grupo estava, como se viu, muito bem preparado para fazer aquilo que a Igreja nunca quis fazer, porque sabia o resultado e sabia do seu crime de encobrimento.

A CI centrou-se na vítima, usou metodologia qualitativa e quantitativa, apelou ao testemunho, cruzou dados, consultou arquivos da Igreja (quando não foi obstaculizado).

A Igreja sempre soube o método e o objetivo deste estudo seríssimo e ouviu sem emoção as conclusões que fizeram o país sangrar. O país sangrou, não por acreditarmos no milagre português que alguns pregavam, mas por vermos diante dos nossos olhos a verdade concreta dos suicídios, do silenciamento por sentimentos de vergonha e de culpa.

Soubemos do stress-pós-traumático, dos tratamentos psiquiátricos, soubemos que os abusadores no seio da Igreja são dados à repetição do comportamento, pelo que, nas palavras do relatório, “é fundamental ditar o afastamento de cargos ou atividades que impliquem contacto com crianças”. Soubemos que o próprio Direito Canónico tratou de proteger a Igreja “mantendo -se a Igreja como a principal vítima da ação do agente infrator”. Soubemos que “o debate interno por parte da Igreja Católica portuguesa relativamente às modalidades de abertura dos seus arquivos” levou ao que tem um nome: obstrução.

A maior percentagem de crianças foi abusada entre os 10 e os 14 anos de idade, sendo a média de 11,2 anos. Predominam as modalidades com manipulação de órgãos sexuais, masturbação, sexo oral e sexo anal, bem como cópula completa.

Os locais dos abusos são os seminários, a igreja sem outra especificação, o confessionário, a casa paroquial e a escola religiosa. Depois há os agrupamentos de escuteiros. Calcula-se que as 512 pessoas vítimas conheçam ou tenham estado em contacto com perto de 4300 outras vítimas.

Soubemos do poder de se ser sacerdote, da manipulação espiritual, da manipulação da vida material da vítima, soubemos da monstruosa arma da “purificação”.

Nas palavras do relatório, “os depoimentos testemunham o clima emocional de terror, de uma verdadeira atitude de “banalidade do mal”.

As vítimas querem apoio psicológico e psiquiátrico, um pedido de perdão e mudança da Igreja. Os abusos são passado e presente e serão futuro se não forem tomadas medidas sérias. Algumas daquelas pessoas abusadoras referenciadas ainda permanecem em atividade eclesiástica. A ocultação foi sistémica.

Perante isto, no dia 3 de março de 2023, a CEP foi o retrato do patriarcado instalado, gelado, sem empatia e cobarde. O mesmo José Ornelas que em 2021 dizia haver unanimidade quanto a tratar da descoberta da verdade e da ocultação, pediu desculpas sem convicção e ofendeu o trabalho da CI. Afinal, aquele relatório, que é exatamente o que tinha de ser, resultou numa “lista de nomes”.

Diz que é pouco, vai-se estudar, vejam lá que não há nomes das vítimas (?!) e já agora recorda-nos que isto também acontece nas famílias, não é? Enquanto ouvia aqueles homens pertencentes a uma Igreja que o relatório da CI demonstra não saber nada do que devia saber, pouco colaborativa e com o peso brutal de décadas e décadas de ocultação de crimes contra crianças como se o ofendido fosse “Deus” e a “Santa Igreja”, pensei nas vítimas encorajadas a falar anonimamente. Pensei na revivência monstruosa do trauma, na sensação de sacrifício inútil, na raiva, na impotência.

Será que José Ornelas acredita que não sabemos que os nomes enviados têm um contexto de análise cuidado que, precisamente, levou ao seu envio? Como é possível não afastar preventivamente (o que não é condenar) os alegados abusadores? Como é possível não avançar com o pagamento de indemnizações em nome da história secular de ocultação e promoção de crime hediondos? Não saberá a Igreja por esta hora que em cada decisão de ocultação e deslocação de um abusador promoveu novos crimes? Pensará a Igreja que as vítimas passadas e atuais sentirão confiança em comissões criadas pela Igreja ou que sentirão sequer vontade de respirar em qualquer espaço da Igreja? Manuel Clemente diz que indemnizar seria ofensivo para as vítimas. A sério? Assistimos a uma Igreja cobarde, ora citando o direito civil (vamos lá ver o que é encobrimento), ora citando o direito canónico.

É tempo de dizer basta a esta Igreja infame, perigosa e insistente numa moral sexual perversa sobre a qual já escrevi.

O primeiro passo para o fim da subserviência dos frágeis é o fim da subserviência do Estado. A Concordata tem de ser revista. As autoridades devem poder perguntar aos eclesiásticos sobre factos e coisas de que tenham tido conhecimento por motivo do seu ministério. Os direitos das crianças são direitos humanos e o Estado de Direito tem de cuidar deles, não permitindo coutadas de privilégio.

A autoridade eclesiástica define o conteúdo do ensino da religião e moral católicas, mas “em conformidade com as orientações gerais do sistema de ensino português”. Não podemos aceitar que se ensine uma moral sexual que castra, inflige dor e aliena. Tem de se acabar com a isenção de fiscalização, pelo Estado, do regime interno dos estabelecimentos de formação e cultura eclesiástica. A Igreja (e já agora a Universidade Católica) não podem continuar a beneficiar do regime fiscal paradisíaco previsto na lei. Sim, tudo isto é subordinação.

O Estado tem de intervir, tem de zelar pelo fim de espaços fechados perigosos para as crianças, tem de investigar penalmente os abusadores individuais e a Igreja coletivamente. O Estado tem de avançar com a comissão pedida pela CI e parar de permitir que a Igreja invada o seu espaço. Que é o nosso, de todos, dos crentes e dos não crentes. Fez bem a MJ em receber a CI e mostrar abertura ao alargamento do prazo de prescrição.»

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