20.6.22

Num novo sistema tripartido, Macron napoleónico morreu

 


«Lembro-me dos debates, por essa Europa fora, e em Portugal também, em torno do apelo de Mélenchon na noite da primeira volta das últimas eleições presidenciais, quando ele ficou em terceiro. Ao dizer que nem um voto deveria ir para Marine Le Pen não teria sido suficientemente claro, dizia-se.

O sistema eleitoral para as eleições legislativas em França, de duas voltas em que podem passar mais do que dois candidatos, foi desenhado ao milímetro para favorecer o centro e afastar muitos franceses da escolha. Não espanta que tantos se vão abstendo, quando alguns dos partidos mais relevantes tinham uma representação marginal na Assembleia. Na passagem da primeira para a segunda volta, o movimento Ensemble!, de Emanuel Macron, teve uma grande queda face a 2017 – nos 577 círculos, passou de 518 na segunda volta para 420. A aliança Nouvelle Union Populaire Écologique et Sociale (NUPES, que junta a France Insoumise de Mélenchon, ecologistas, comunistas e socialistas) teve uma grande subida – passou de 146 para 390. Republicanos e democratas tiveram uma queda enorme – passaram de 300 para 75. E a extrema-direita de Le Pen uma subida: passou de 120 para 208.

Na campanha para a segunda volta das presidenciais, Macron e as principais figuras do partido criado à sua imagem e semelhança apelaram ao voto da esquerda em nome de uma “frente republicana” que partilha um conjunto de “valores comuns”. Chegada à campanha da segunda volta destas legislativas, os valores comuns passaram a ser, para os macronistas, entre os dois “extremistas”, sem distinção. Uma coligação que inclui socialistas e ecologistas foi mesmo chamada de “anarquista”.

O movimento de Macron recusou o apelo ao voto – mesmo que fosse pela negativa, como fez Mélenchon – genérico nos círculos onde não passou à segunda volta e era preciso vencer a extrema-direita. Incluindo a circunscrição onde a própria Marine Le Pen passou à segunda volta (o 11º círculo de Pas-de-Calais), enfrentando a ecologista Marine Tondelier, que concorreu pelo NUPES. Alexandrine Pintus, do Ressemble, foi eliminada na primeira volta e apelou ao voto em branco, favorecendo a eleição de Marine Le Pen. A ministra da Transição Ecológica, Amélie de Montchalin, disse "aos republicanos da esquerda e da direita para bloquearem a extrema-esquerda no domingo", pois "o seu verdadeiro projeto é a desordem e a anarquia, o permanente questionamento das nossas instituições e dos meios de comunicação social". O ex-ministro da Educação, Jean-Michel Blanquer, disse que "a extrema-esquerda é um perigo tão importante como a extrema-direita". Há umas semanas, apelou ao voto da “extrema-esquerda” em Macron para travar a extrema-direita. A ministra do Desporto, Roxana Maracineanu, apelou "frente republicana", mas para travar a candidata da NUPES, Rachel Keke, uma trabalhadora das limpezas que liderou uma luta laboral com a Ibis. Uma perigosa anarquista comparável aos bullies neo-fascistas, portanto.

Uma das poucas exceções ao oportunismo absoluto do macronismo foi o ministro da Educação, Pap Ndiaye, que disse o óbvio: "o combate à extrema-direita não é um princípio de geometria variável". E a porta-voz do partido, que repetiu o apelo que mereceu tantas críticas a Mélenchon, nas presidenciais: "nem um voto deve ir para a União Nacional". O que foi pouco em Mélenchon foi extraordinário nas hostes de Macron.

Isto serve para recordar o que já devia ser óbvio para todos: os neoliberais, mesmo os que se dizem centristas, preferem a extrema-direita à esquerda. Ela não lhes levanta nenhum problema relevante nas suas políticas fundamentais e funciona como fantasma para exigir os votos daqueles com quem dizem, apenas quando lhes interessa, partilhar valores comuns. Como se viu nesta campanha, não acreditam nessa partilha. E talvez tenha razão para não acreditar. Por esse mundo fora, não faltam alianças entre neoliberais e extrema-direita, não encontram muitas com a esquerda.

A esquerda deve participar na resistência à extrema-direita sem hesitações. Porque os seus valores – os mesmos que a levam a combater Boris Johnson e o seu sinistro programa de envio de refugiados para o Ruanda – não lhe permitem o tipo de relativismo moral que o partido de Macron exibiu. Mas a melhor forma de combater a extrema-direita é disputar-lhe eleitores. É ser alternativa ao neoliberalismo, nunca sua aliada.

Depois de 25% na primeira volta (o mesmo que a NUPES), Emanuel Macron perdeu, ontem, a maioria absoluta. Precisava 289 deputados, ficou-se pelo pelos 246 (39%). Longe de conseguir o sonho de liderar o governo depois de estar tão próximo do seu estertor, a esquerda afirmou-se, graças à NUPES, como a principal força de oposição: 142 deputados (32%), 155 com o resto da esquerda. Se tivesse aceitado o papel de secundarização que muitos idiotas uteis defendem, seria a extrema-direita a liderar a oposição. Conseguiu romper o bloqueio de um sistema eleitoral feito para a deixar fora do parlamento – enquanto crescia fora dele – e conquistou um número de deputados histórico: 89 (17%). Este é o legado de Macron. Na sua governação e, nesta campanha, quando os seus candidatos normalizavam a extrema-direita, comparando-a à esquerda. A direita tradicional (LR e UDI) fica-se pelos 64 deputados (7%). Uma queda a pique que, no entanto, lhes dá a possibilidade de construir maioria com a Macron.

Neste momento, Macron tem três possibilidades. A primeira é governar com a direita tradicional, aceitando o sistema tripartido que se impôs (com ele, Mélenchon e Le Pen como principais figuras, o que pela primeira vez se traduziu em representação parlamentar, mesmo que distorcida) e fazendo pontes com o espaço político a que realmente pertence, libertando definitivamente o centro-esquerda. Os republicanos disseram, no entanto, que continuariam na oposição, mas “construtiva”. A segunda é tentar dividir o bloco dos partidos da esquerda, para voltar a ter Le Pen como única alternativa. Se socialistas e comunistas caírem na esparrela voltarão a namorar a extinção depois da NUPES os ter salvo. A terceira é esperar um ano, demonstrar a ingovernabilidade da nova situação, e dissolver o parlamento. Isto, quando se adivinha uma crise económica que dificilmente lhe será favorável. Uma coisa é certa: sem maioria nem aliados, o Macron napoleónico morreu e agora tem a liderar a oposição um campo progressista que julgava ter neutralizado há cinco anos.»

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