18.1.25

Anos 30 do século XX e anos 20 do século XXI

 


«A propósito do “espírito da época” destes anos em que vivemos, há quem faça uma comparação com os anos 30 do século XX, e há quem se indigne com essa comparação. Os anos 30 do século XX são os anos de ascensão do nazismo alemão, já com o pano de fundo do fascismo italiano, dez anos antes e, de um modo geral, do crescimento do autoritarismo e do totalitarismo um pouco por toda a Europa, em particular em Portugal, que de 1926 a 1974 teve a mais longa ditadura europeia, com excepção da URSS. Em Espanha, a ditadura de Primo de Rivera, seguida da chamada “dictablanda”, e, um pouco por todo o lado, há um duro confronto civil entre os partidos da Internacional Comunista e movimentos protofascistas em França, na Alemanha, no Reino Unido. A URSS era a “ditadura do proletariado” e, até ao Pacto Germano-Soviético, apresentava-se como cabeça de uma frente antifascista, na Europa e no resto do mundo.

A década de 30 era muito marcada pelas sequelas da I Guerra Mundial, de 1914-1918, foi a da guerra civil em Espanha (1936-1939) e terminou na II Guerra Mundial iniciada em 1939. Os pontos comuns desses anos eram a crise das democracias que tinham sobrevivido aos anos 20 e o desaparecimento do centro político, da social-democracia, do conservadorismo e do socialismo democrático. Na realidade, o desaparecimento das democracias europeias que ficaram “encostadas à parede”. A capa da revista Ordem Nova, dirigida por Marcelo Caetano, publicada em 1926-27, retrata bem o “espírito da época” que se materializava nos anos seguintes.

Tenho usado a expressão “espírito da época”, Zeitgeist, fruto da capacidade filosófica de Kant, Hegel e Heidegger, os alemães são capazes de nomear abstracções que vão mais longe do que o vocabulário corrente. É o Zeitgeist dos nossos dias idêntico ao dos anos 30 do século XX? Sim e não.

Vamos já varrer o “não”. A sombra da I Guerra Mundial não existe nos nacionalismos humilhados, e os movimentos fascistas e nazis, Mussolini e Hitler, com a sua coreografia militarizada e na sua arregimentação das massas nada têm a ver, no seu impulso e mecânica, com os movimentos de extrema-direita do mainstream. Trump não é Hitler, nem Ventura e o Chega são fascistas. A utilização destas comparações e terminologia são um impedimento para se compreender as características dos movimentos radicais de direita ou, se se quiser, de extrema-direita dos nossos dias. Embora a genealogia da extrema-direita francesa, italiana e mesmo a alemã tenham raízes no fascismo italiano, no colaboracionismo francês e no nazismo alemão, esses movimentos ou se afastaram das suas origens ou são novos, como por exemplo no papel da RDA na Alemanha.

A outra grande diferença é que não há nada de parecido com o comunismo e os partidos comunistas nos anos 30. Do outro lado do Zeitgeist da extrema-direita há apenas ruínas do comunismo clássico, e as novas esquerdas alternativas que surgiram desde os anos 60 nada têm de comum com o comunismo, nem nos objectivos, nem na organização, nem na influência social. São movimentos que foram juvenis no passado, que nada têm a ver com a “classe operária” e que impulsionaram miríades de causas, como o feminismo, os movimentos LGBT, a ecologia, os “direitos” dos animais, a “ideologia de género”, e que pelo seu vanguardismo excessivo, e muitas vezes disparatado, ficaram como folclore urbano e intelectual, muita vezes ofensivo das pessoas comuns.

Mas há parecenças que podem justificar a comparação? Há, sem dúvida. A primeira das semelhanças é a indiferença face ao perigo da crise das democracias, a inconsciência dos partidos democráticos, como o PS e o PSD em Portugal, quanto aos riscos do presente. Podem identificá-los, e falar deles, mas não actuam com a intransigência e a dureza que se justifica. E como pano de fundo, uma grande maioria de europeus é dramaticamente indiferente, quando não transigente, quanto ao papel de homens como Trump ou preguiçosa e temerosa em relação a Putin, que invadiu militarmente um país europeu.

Há mais e, num certo sentido, pior: muito do que fez o Zeitgeist dos anos 30 está presente no actual Zeitgeist. Em Portugal, na Europa e nos EUA passou a haver o “outro”, neste caso os imigrantes, que suscitam uma forte identidade de risco, tanto maior quanto estes são “diferentes” na cor, no traje, na religião. A caixa de Pandora que o Governo abriu, relacionando imigrantes com criminosos, encontrou um terreno fértil para uma hostilidade crescente aos “outros” e isso tem precedentes históricos e acaba sempre mal.

O último discurso de Biden, que nos actuais costumes portugueses seria considerado um discurso comunista ou esquerdista radical, denunciando o papel da aliança entre o populismo, o extremismo do GOP-MAGA, com os oligarcas, ou seja, os grandes capitalistas (como os que se aliaram com Hitler), nunca seria hoje proferido em Portugal por alguém dos partidos do “arco da navegação”. Um, porque virou à direita radical, porque está convencido que essa viragem é irrelevante no plano político e serve apenas para ganhar votos; o outro porque anda para cima para baixo, para o meio e para o lado, com uma política errática, despassarado com os tempos de hoje. Ou seja, já foram domados pelo “espírito do tempo. Como nos anos 30 do século XX.»


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