«O acordo de cessar-fogo em Gaza não é muito distante ao que Hamas queria, há meses. E isso diz-nos que poderiam ter sido poupadas milhares de vida. Porque há meses que se sabia que nenhum novo objetivo militar ainda poderia ser conquistado. O prolongamento da guerra resultou de interesses políticos de Netanyahu e da espectativa de ver Trump chegar à Casa Branca. E o Hamas não foi aniquilado, porque nunca poderia sê-lo, com esta ação. Foi o próprio Antony Blinken a confirmar que o grupo “recrutou quase tantos novos militantes quanto perdeu”.
Na primeira fase deste acordo, haverá cessar-fogo, com a retirada das tropas israelitas das zonas habitadas, mantendo-se em parte do território; o regresso dos refugiados palestinianos; a libertação de 33 reféns israelitas e de cerca de mil presos palestinianos, incluindo crianças. Falta perceber se, entre os libertados, está Maruan Barguti, uma possível liderança palestiniana, tal como foi pedido por Mahmoud Abbas. Apostaria que não. Isso seria retirar aos islamistas a liderança política da Palestina, coisa que Israel nunca quis, como já aqui documentei.
O cessar-fogo permitirá apoio humanitário a Gaza. Esta fase durará seis semanas, que podem ser prolongadas se as negociações para entrar na segunda fase demorarem mais tempo. A segunda fase corresponderá ao fim da guerra, retirada de Israel e libertação do resto dos reféns. A terceira fase, corresponderá à reconstrução de Gaza e entrega dos corpos dos refugiados mortos.
Mesmo que este acordo tenha sido construído por Blinken e tenha sido Joe Biden a dar a cara por ele, só a proximidade do dia em que Donald Trump chegará à Casa Branca que o permitiu. Porque a sobrevivência política de Benjamin Netanyahu depende do apoio do novo presidente. E porque o estilo destemperado de Trump é mais assustador do que o jogo do costume, dos democratas. Israel sabe que não pode fazer com Trump o que fez com Biden. E isso é triste. É uma vitória tremenda de Trump, para usar um termo que ele gosta.
Ou Netanyahu tem medo dos humores de Trump, ou foi-lhe prometida qualquer coisa para depois disto ou, provavelmente, as duas coisas. Sem pôr o carro à frente dos bois, quando apenas a primeira fase deste acordo parece fazível, podendo ser destruída a qualquer momento pelos dois lados, o futuro pode ser o reconhecimento das pretensões mais radicais de Israel para os colonatos, os territórios ocupados e Jerusalém. Pode ser o enterro definitivo da cada vez mais distante solução dos dois Estados. Em troca, Israel tem carta branca para lidar o Irão, única preocupação de Trump.
Para Trump, é importante recuperar a dinâmica dos acordos de Abraão, que desequilibraram os poderes no Médio Oriente, ajudando a enterrar os palestinianos na areia dos interesses e negócios das ditaduras árabes. Deixando os iranianos sozinhos a defender, por interesse próprio, o abandonado povo da Palestina. Transformar a causa palestiniana naquilo em que se tornou a causa curda: em vez de uma disputa territorial, a luta solitária e perdida de um povo sem Estado.
A solução trumpista para o conflito não é defender a causa palestiniana, é isolá-la e matá-la. O que não é difícil, tendo em conta a natureza ditatorial dos regimes árabes, distantes da opinião popular. O que quer dizer que se isolam os moderados e ficam os aliados de Irão. Mas, para chegar a isso é necessário pôr fim a um genocídio que não permite que qualquer país árabe converse sequer com Israel.
Mas isto é o futuro. Agora, é tempo para celebrar a interrupção do massacre, permitindo que o povo mártir de Gaza saia do inenarrável inferno em que vive há mais de um ano e receba o apoio humanitário que um mundo que se demitiu de todos os deveres lhe deve. É tempo para celebrar a libertação dos reféns criminosamente capturados pelo Hamas, que nunca estiveram nas prioridades de Netanyahu. Sabendo que a fatura virá a ser apresentada. Tem sido sempre. Não será seguramente diferente com Donald Trump.»
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