19.7.23

O Ministério Público tem de ser defendido

 


«O episódio da busca a Rui Rio, com a grotesca comunicação prévia às televisões, suscitou um intenso debate. Como foi lembrado, do que se sabe do caso – alegadamente uma investigação sobre se funcionários do grupo parlamentar do PSD fizeram atividades profissionais para o seu partido – a coisa não tem fundamento. A lei determina, e não podia ser de outro modo, que são os partidos a decidir o uso dos seus recursos profissionais e de como afetam as verbas que recebem, de que têm de prestar contas detalhadas.

Não é uma entidade pública que delibera sobre quem são os funcionários de um partido, ou que funções nele desempenham, ou que avalia o seu cumprimento, ou que decide o seu salário ou hierarquia. Os funcionários partidários desempenham cargos de confiança política e, por isso, estão sujeitos às regras próprias que o seu partido defina; qualquer interferência externa que viole esse princípio seria abusiva.

A utilização do financiamento público é, também como tem de ser, sujeita a verificação por um tribunal, que tem detetado e punido faltas na documentação ou no uso de verbas. Quando se trate de evidência de crimes, então uma investigação é necessária; o caso Tutti Fruti, que deu origem a buscas, incluindo em gabinete de quem hoje se faz de novas, é um exemplo negativo, visto que, passados vários anos, ainda não foi julgado. A diferença desse outro processo em relação ao “caso Rio”, no entanto, é que é implausível que este venha sequer a dar lugar a algum outro procedimento judicial que não seja o tão discutido direto das televisões sobre a perigosa varanda do ex-líder do PSD. E é aqui que o Ministério Público precisa de ser defendido.

A formação do Ministério Público como magistratura independente decorre da escolha constitucional da democracia e é um dos pilares fundamentais da Justiça em Portugal: subordina o trabalho policial, o que acrescenta garantias aos cidadãos, e prossegue uma estratégia para a Justiça, que é definida e escrutinável.

Ora, o episódio da varanda é uma machadada no respeito por esta magistratura. Correspondendo a práticas de divulgação de procedimentos, de transcrições de escutas e até de gravações vídeo de interrogatórios, revela que alguns agentes judiciários, e em não poucos casos serão magistrados, procuram uma condenação imediata na opinião pública, na base de um efeito de suspeita assente na solenidade da busca ou, ainda, na filtragem de documentos ou de sugestão de acusações.

Esse processo é triplamente errado: não permite o contraditório e a defesa da pessoa apontada; envolve jornalistas que não têm meios para avaliar a credibilidade das fontes; e contamina o trabalho sério de investigação de todos os magistrados, espanejando casos que morrem sem conduzir a nenhum resultado. É uma das instâncias em que a aparente vantagem privada produz uma certa desvantagem coletiva: para quem realizou a fuga ao segredo de justiça, parece que o resultado é compensatório, a condenação na praça pública é adquirida antes e mesmo sem julgamento; para a justiça no seu todo, é grave, dado que cria descredibilização sistémica e sugere instrumentalização pessoal ou de outra natureza.

Um exemplo é o caso, nunca investigado, da revelação por uma assessora de imprensa de um procurador-geral sobre as instruções que recebeu para entregar várias transcrições de depoimentos a um jornal de escândalos, presumivelmente para tentar incriminar figuras públicas que se revelou nada terem a ver com o assunto, o escândalo Casa Pia. E muitos outros se podem apontar, até em casos sindicados por juízes: prisão preventiva abusiva, acusações a deputados com processos sem sustentação e outros processos que, alimentando alguma comunicação, sobrepuseram o espetáculo falso à seriedade da justiça.

O Ministério Público precisa de se defender destas práticas e é como corpo da justiça que o deve fazer, mesmo quando a origem da fuga está em gabinetes de juízes ou outros. Os magistrados que prosseguem um trabalho cuidadoso e moroso de defesa da lei são vítimas destes atropelos, que põem em causa a sua profissão e o seu dever constitucional. É dessas pessoas que devemos esperar a mais enérgica defesa da sua magistratura, restabelecendo as condições plenas do seu exercício de poder institucional. É a elas que se deve fazer o apelo mais empenhado para a defesa da justiça em Portugal.

Mais, se não for o Ministério Público a defender os seus princípios de atuação legal, tanto a continuação destas práticas já banalizadas quanto as consequências de precipitadas respostas a estes episódios caricatos podem ser as mais prejudiciais ao país.»

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