Mais um excelente texto de Sandra Monteiro, no último número de Le Monde Diplomatique (edição Portuguesa).
«Há, por um lado, a voragem vertiginosa das medidas de austeridade. Elas entram-nos pela casa adentro através do aumento dos preços dos bens essenciais − alimentos, transportes, energia, saúde − e da diminuição do rendimento disponível. Causam uma angústia que nenhum serão de tele-evangelismo de mercado pode aquietar, por muito que foque casos de sucesso e acredite que um dia o país vai «voltar aos mercados». Os efeitos das medidas de austeridade estão bem identificados, tanto em Portugal como à escala europeia: desemprego galopante, compressão salarial, erosão de direitos laborais e sociais, privatizações ao desbarato, perda de instrumentos públicos de política fiscal e industrial, recessão económica, derrapagens nos défices orçamentais, dívidas públicas que se tornam impagáveis, destruição do Estado social, desigualdades socioeconómicas crescentes, fortalecimento dos mercados financeiros e fragilização generalizada das democracias. Em consequência, o contrato social em que as democracias assentam tende a ser cada vez mais imposto, em vez de ser aceite no quadro de uma ética partilhada.
A estas medidas de austeridade e aos seus efeitos só poderá opor-se uma forte mobilização popular, porque nem a arquitectura da União Europeia e da zona euro nem a actuação dos governos nacionais − que contribuem de bom grado para o seu próprio sequestro pelos mercados financeiros − estão, por si sós, a dar mostras da flexibilidade e da prontidão que seriam necessárias para se evitar o colapso social e económico-financeiro dos seus Estados-membros, num processo que começou pelos chamados países periféricos mas ameaça alastrar-se.
Neste sentido, a manifestação organizada pela Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP) a 1 de Outubro e a que está convocada para o dia 15 por diversos movimentos sociais, bem como outros protestos já agendados, são reveladoras do potencial de coordenação para pressionar alternativas que hoje existe. Eles unem cidadãos que partilham uma «lista de medidas a desfazer» para uma saída não-austeritária para a crise. Os governos que aderiram à austeridade como uma janela de oportunidade a explorar ao máximo − enquanto ela não se fechar − sabem bem como precisam de demover os cidadãos de saírem para as ruas. Esse é, aliás, o principal objectivo do ambiente de «expectativa de violência» criado, a propósito de protestos que se anunciam pacíficos, com a ajuda preciosa e muito acrítica de um jornalismo, sobretudo televisivo, que parece «embarcado» (embedded) na «guerra da austeridade».
Há, por outro lado, movimentos menos visíveis associados a este tempo de austeridade. Eles prendem-se com o papel que o cidadão pode ter no aprofundamento da democracia do Estado, fazendo do escrutínio público uma alavanca para saídas sustentáveis para a crise. Esses debates e práticas não têm em si mesmo nada de muito novo, mas a sua persistente invisibilidade pode sair-nos muito cara em tempos como estes.
Enunciem-se apenas dois exemplos, que têm sido aliás, e continuarão a ser, tratados no Le Monde diplomatique − edição portuguesa. O primeiro prende-se com a necessidade de os cidadãos dos países da zona euro, a começar pelos das economias periféricas, se envolverem nos processos de auditoria às dívidas públicas dos respectivos Estados. Só conhecendo essas dívidas poderão tirar conclusões, por exemplo, sobre a sua dimensão ilegítima ou insustentável. Sem este trabalho de escrutínio não será fácil fazer-se uma reestruturação das dívidas públicas em condições que não sejam já de total desespero para os devedores. Porque os credores, e os governos que lhes facilitam o negócio do crédito, continuam apostados em ganhar «tempo de austeridade», para eles medido em tempo de lucro. Ganhar esse tempo vai ser o pano de fundo das novas «medidas de austeridade» e dos novos «planos de salvamento», que serão sempre anunciados com fingida surpresa (a recessão é maior do que previsto, a receita fiscal é menor, etc.), até ao desastre social e à bancarrota das economias atacadas. Primeiro na Grécia, depois em Portugal…
O segundo exemplo tem a ver com o papel que os cidadãos podem ter na recusa de democracias de baixíssima intensidade como as que são construídas, tantas vezes sob os nossos olhos, pela condescendência com as várias formas de populismo. São conhecidas as manifestações que costumam andar-lhe associadas, do desprezo pelos mecanismos e regras de funcionamento da democracia às teias de interesses e favorecimentos que resvalam para a corrupção e a ilegalidade (e respectivos encobrimentos); das desigualdades sociais e da captura sistemática do Estado por interesses privados ao controlo férreo da comunicação social. A situação que existe na Madeira faz vítimas há muito mais tempo do que vêm mostrar as mais recentes revelações (e admissões de comportamentos ilegais por Alberto João Jardim) sobre o buraco orçamental. Basta lembrar, para não recuar mais, o modelo de desenvolvimento que facilitou a tragédia de Fevereiro de 2010. Mas, como bem se sabe pela realidade nacional, este fenómeno surge nos mais diferentes âmbitos do poder, não se resumindo sequer ao local ou regional. Em termos históricos, nem é inédito que as crises sejam propícias à multiplicação e agravamento destes fenómenos. Não foi decerto por recente conversão aos direitos dos trabalhadores que o presidente do governo regional da Madeira afirmou durante a campanha eleitoral que, das medidas tomadas pelo governo em Lisboa, «uma é muito grave para a dignidade do povo português porque permite o despedimento por justa causa» (Público, 3 de Outubro).
A Europa da austeridade e os seus defensores puseram em marcha em projecto de demolição social e institucional muito visível, que os povos estão a sair às ruas para contestar. Vai ser preciso, na rua e não só, muito empenho dos cidadãos para forçar alternativas. Inverter este rumo para o abismo implica fechar a janela de oportunidade que a austeridade abriu para que o governo dos bancos substitua a democracia.»
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