«Trump ganhou entre os hispânicos porque eles se preocupam com a segurança, com a economia, com os temas de que se fala à volta da mesa da cozinha”, disse, no encerramento da noite eleitoral da CNN, David Urban, conselheiro de Trump na campanha de 2016. Van Jones, advogado de direitos cívicos e democrata, respondeu-lhe com as afro-americanas magoadas por não assistirem à vitória de uma delas, com os trans e com os imigrantes indocumentados. Disse, com razão, que não será a elite a pagar o preço desta eleição. Mas não concedeu na parte em que o republicano tinha razão: sendo brancos, negros, hispânicos ou homossexuais, os americanos que fizeram a diferença, votando em Trump ou ficando em casa, fizeram-no por causa da economia, dos salários, das contas para pagar. Aquilo de que a esquerda costumava falar.
Esta foi, antes de tudo, uma derrota dos democratas. Trump até perdeu 1,6 milhões de votos. Só que Kamala perdeu mais de 13 milhões. Desta vez, não são precisos cientistas políticos para explicar o resultado das eleições: 72% dos norte-americanos estão insatisfeitos com a situa-ção do país, dois terços dizem que a economia está mal e, destes, 70% votaram em Trump. Kamala ficou abaixo de Biden em todo o lado, perdeu voto negro e, acima de tudo, perdeu voto hispânico. Durante dois anos, a inflação superou o aumento dos salários. Apesar de isso ter sido, em grande parte, compensado nos dois últimos anos, com um aumento real de salários, a cicatriz ficou lá. Quase todos os governos democráticos foram castigados pela crise inflacionista. Assim como Trump foi castigado pela pandemia. Não sendo os números da economia maus, procuramos a razão do voto em erros de perceção dos eleitores. Mas de que andaram os democratas a falar, durante este tempo todo? Da democracia, com razão. Se ainda deram alguma luta foi por causa disso. E do que acham que interessa a cada nicho eleitoral em que pensam quando pensam em política. Porque teimam em seccioná-lo pela etnia, género ou orientação sexual para explicar um fenómeno que está nos velhos livros de política: a economia, estúpidos!
Diz-se que os democratas abandonaram os trabalhadores brancos, mas o que toda a gente ouve é a palavra “brancos”, não a palavra “trabalhadores”. Essa é a grande vitória do trumpismo. Como se viu pelo comportamento eleitoral, quando a condição social supera a identitária, trabalhadores hispânicos e negros votam como os trabalhadores brancos. E, no entanto, continuamos a falar como se o racismo e o sexismo de Trump fossem o maior segredo para a sua vitória. Quando, num debate, em 2018, o instalado congressista democrata Joe Crowley exibia o seu trabalho pelas minorias, Alexandria Ocasio-Cortez, a jovem de 29 anos que o iria derrotar, não lhe recordou que era uma mulher porto-riquenha. Disse-lhe: “O que está em causa não é a diversidade ou a raça, é a classe.” Só que a palavra “classe”, ao contrário de “etnia” e “orientação sexual”, passou a ter um peso ideológico que a tornou impronunciável. Esta é a derrota histórica que deu à extrema-direita a hegemonia na classe trabalhadora num dos países mais desiguais do mundo desenvolvido. De tal forma, que já nem compreendemos um fenómeno eleitoral que nada tem de extraordinário.
Nestas circunstâncias, Kamala até fez milagres. Em três meses, com baixa popularidade e sem ter ido a primárias, preparou um debate que venceu e fez campanha por todo um continente. E ainda teve mais votos do que Hillary, em 2016. O pecado original foi a recandidatura de Biden. Kamala só foi apanhar os cacos. Ainda assim, como é que Trump, depois do 6 de janeiro, consegue ser um dos dois republicanos que, desde 1988, vence no voto popular? Porque o sistema normalizou uma tentativa de golpe contra a democracia. Nisto, não há meios termos: ou era condenado e preso, ou um candidato como os outros.
Este não é o Trump de 2016. Controla a Presidência, o Senado e provavelmente a Câmara dos Representantes. O Supremo tornou-o inimputável, mudando a natureza do regime. Esmagou o partido republicano, que é um mero suporte institucional do movimento MAGA. E rodeou-se de gente ainda mais fanática e perigosa do que ele. Começa, em janeiro, uma nova ordem de bilionários tecnológicos que se sentarão na cadeira do poder político para moldar o mundo aos seus sonhos distópicos. As duas guerras que nos assustam seguirão para o seu epílogo trágico. Esta vitória vai-se disseminar por todo o mundo ocidental. E vai ser tudo demasiado rápido para nos prepararmos. Mas podemos, ao menos, perceber que as respostas que temos dado não resultam. Talvez as certas sejam as que esquecemos.»
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