7.11.24

Um novo tempo de trevas

 


«O farol da democracia dos Estados Unidos apagou-se esta terça-feira e só os mais optimistas hão-de acreditar que a sua luz só está temporariamente perdida num nevoeiro fugaz. Na obscuridade, não haja dúvidas, haverá jornalistas, magistrados, servidores públicos, académicos, artistas e milhões de cidadãos a lutar pelo seu brilho e a seguir a iluminação dos seus avisos. Mas depois da onda de choque provocada pela brutal vitória de Donald Trump nas eleições de terça-feira, não há razões para se acreditar que está em causa um fenómeno passageiro. Os Estados Unidos e, muito provavelmente por efeitos de contágio, a Europa e o mundo estão de volta a uma ordem política. O sentido de progresso da Humanidade em direcção às Luzes que o Ocidente começou a construir há dois séculos entrou outra vez em recuo. As trevas estão de volta. A democracia sofreu uma das suas maiores derrotas de sempre.

Que a vanguarda desse movimento esteja no país mais desenvolvido, mais aberto, mais liberal do mundo diz muito do que está em causa. Não se trata da obra de um homem ou de um movimento com poder ou carisma para criar uma onda de choque numa sociedade subdesenvolvida e pouco esclarecida O que mudou radicalmente num curto espaço de tempo foram as pessoas, que perderam o sentido de comunidade, passaram a olhar os outros como uma ameaça e para o poder como uma redenção baseada na agressividade e no conflito. A mudança, clara e indiscutível, que milhões de americanos sufragaram livremente nestas eleições projecta uma nova ideologia. Uma nova forma de ver o mundo e uma nova proposta para o transformar. As suas raízes são antigas, encontram-se no populismo que odeia as elites, na catalogação de inimigos, no desprezo com que se encaram os adversários políticos.

Ao contrário do que aconteceu em outros momentos dramáticos da História, esta emergência do radicalismo da extrema-direita não ocorre num quadro real de dificuldades. Os Estados Unidos, ou a Europa, não vivem numa crise desgraçada como a que causou miséria no pós-I Guerra Mundial ou na ressaca da crise de 1929. Não há desemprego em massa, não há conflitos entre milícias extremistas nas ruas das grandes cidades, não há uma falência óbvia da lei, da ordem ou do Estado como nos tempos que determinaram as trevas dos anos 20 ou 30 do século passado. O que há são percepções, “storytellings hegemónicos”, para usar uma expressão do sociólogo João Teixeira Lopes, que desenterraram os instintos mais básicos e perigosos da humanidade. O propósito é conhecido: criar um quadro de ameaças que exige combate, primeiro, e eliminação, depois.

Sabemos muito bem o que originou esta terrível mudança, mas não sabemos ainda como a reverter. Essa é de resto a origem da grande angústia dos nossos tempos: como recuperar o consenso democrático? Sabemos que a estupidez da esquerda, que trocou as grandes causas, dos pobres, dos operários, das nações oprimidas, pelas múltiplas fatias das causas identitárias, é responsável pelo que está a acontecer. Sabemos que a incapacidade das democracias em travar a crescente e indecente desigualdade na partilha de rendimentos fomentou o ressentimento. Sabemos que a ausência de perspectivas para milhões de pessoas dos países ricos as levou para os braços do niilismo e da desesperança. Mas sabemos também que a aposta no fortalecimento da classe média, desde sempre o cimento da democracia, ou na inclusão dos temas do racismo ou da igualdade de género nos grandes programas dos partidos do centro do poder já não bastam para reverter a tendência.

Não são Trump, Orbán ou Ventura que justificam a maior preocupação. Eles são apenas o espelho e ao mesmo tempo o íman de uma vaga de fundo que começa a dominar as novas formas de ler o mundo. Claro que a estimulam. É evidente que sabem muito bem usar as novas ferramentas da era digital para a acelerar. Mas não haja ilusões: o que eles fazem é regar as sementes da frustração e do ressentimento que foram germinando nas sociedades livres ao longo das últimas décadas. O grande drama existencial dos democratas está exactamente nesta constatação. É fácil apontar o dedo e denunciar as patranhas da demagogia populista e extremista, mas é muito difícil encontrar argumentos, ideias e projectos capazes de mudar o sentimento de uma franja cada vez mais maior das sociedades da América ou da Europa.

Até porque, como já se percebeu, o recurso aos velhos argumentos da razão não funciona. A razão, a grande conquista da Europa e do Ocidente que promoveu o progresso, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, o Estado de direito, as constituições liberais ou a criação de instituições multilaterais como a ONU para regular as tensões geopolíticas, deixou de ser um bem percebido e partilhado por homens e mulheres livres.

A razão nos nossos tempos é lida como um privilégio das elites políticas ou intelectuais. Não é vista um utensílio mental para determinar posições éticas perante os problemas das pessoas ou das sociedades. É apenas um ardil para abrir portas à imigração ou promover as guerras culturais da esquerda. Para os eleitores de Trump ou de Ventura, a razão é o grau zero da política. Nada vale como argumento para a denúncia dos perigos do proteccionismo, da intolerância ou da tirania. Sem quadros de referência éticos ou filosóficos, os eleitores dos Estados Unidos ou, em número crescente, na Europa, estilhaçam todo o catálogo de valores que erigiram as sociedades democráticas. Regressam assim à regra onde os autocratas, a violência do poder e a ausência da liberdade vívida e consciente ditam as regras.

A extrema-direita, oleada por elites empresariais, por homens sem escrúpulos e pelo poder destruidor das redes sociais, chegou para durar. O novo farol dos Estados Unidos vai influenciar o futuro da política no Brasil e na Europa. Autocratas como Putin, Orbán ou Netanyahu serão reforçados – deixam de ser a excrescência do poder político e entram na galeria de estrelas da nova ordem política. A escuridão parece inexorável. As coisas vão piorar até que, num futuro próximo, a luz regresse. Oxalá não seja necessário, como em outros tempos, experimentar a guerra para que a ordem em curso se destrua e seja preciso construir uma nova. Mas nem isso podemos dar por garantido: ouçam-se os discursos de Trump com atenção para se perceber como palavras sensíveis e carregadas de História como “deportação”, “países de merda”, “vermes” ou “miseráveis” se pronunciam sem escrúpulo.

In God We Trust (Confiamos em Deus), diz o lema dos Estados Unidos que se lê nos dólares. Bem precisam.»


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