«Segundo a sondagem à boca da urna, da CNN, mais de metade dos eleitores de Donald Trump não confiava, ainda antes da votação, nos resultados eleitorais. Mais de 70% dos eleitores estavam preocupados com a violência depois das eleições. Ainda se votava e Trump já falava, preventivamente, de fraude em Filadélfia. Se perdesse iríamos ter molho.
A questão democrática não é, por isso, um espantalho agitado pelo partido democrata. E o voto em Kamala era pouco mais do que um voto contra Trump. Foi quem saiu na rifa para concorrer contra ele. Não venceu primárias e, tirando poder ser a primeira mulher Presidente, não mobilizou por razões positivas.
Se, de um lado, havia a democracia, do outro estava a economia. Segundo a mesma sondagem da CNN, 7% estão entusiasmados com o caminho que o país está a seguir, 19% satisfeitos, 43% insatisfeitos e 29% zangados. Ou seja, 72% não estão contentes. 58% desaprovam o mandato de Joe Biden.
Só era possível vencer isto se a defesa da democracia superasse a vida quotidiana da maioria das pessoas, coisa que raramente acontece. Segundo as mesmas sondagens, 35% valorizava a democracia, 31% a economia, 14% o aborto, (apenas) 11% a imigração e 4% a política externa. Era aqui que estava a esperança.
Os resultados económicos de Biden nem foram maus. Mas os mais castigados pela inflação foram os do costume. Aconteceu ao governo dos EUA o mesmo que aos governos de quase todas as democracias. A relação da inflação, que os salários não acompanharam, e do aumento do preço das casas com a votação salta à vista em qualquer análise do mapa eleitoral. E era previsível.
Neste cenário, Trump não se ficou pela presidência, em que, roubando eleitores democratas e reforçando a base republicana, conseguiu uma pouco habitual vitória de direita no voto popular. Garantiu o domínio do Senado e, à hora que escrevo, os democratas recuam na câmara de representantes.
Chegado o momento de contar os votos, os democratas descobriram o que acabaria sempre por acontecer. Ao transformarem o partido numa aliança de minorias e abandonarem a representação dos trabalhadores, prepararam o momento em que a identidade das minorias sucumbiria à pertença dessas minorias à maioria social dos trabalhadores. Na realidade, os mais pobres, mais castigados pela inflação, são negros e latinos. Parte deles fugiram para Trump.
Quando os democratas desistiram dos “deploráveis”, como lhes chamou Hillary Clinton, abandonaram o eleitorado branco trabalhador. Quando a inflação castigou todos, hispânicos e negros não agradeceram uma representação identitária que ignora a questão económica e social. Isso terá sido, em parte, compensado pelo voto feminino, que, um pouco por todo o ocidente, tem resistido à agressividade misógina e tóxica do populismo de direita. E que, com uma candidata mulher e uma nova centralidade do aborto no debate político, fez diferença. Mas não chegou.
Desta vez, não há grande exercício a fazer para explicar a vitória de Trump. Foi a “economia, estúpido!” Da mesma forma que Trump perdeu, em 2020, por causa da pandemia. Como aconteceu a tantos governos.
Nada disto é surpreendente ou merece, ao contrário de outros resultados da extrema-direita noutras latitudes, grande ciência política. O problema é que a questão democrática é, nas consequências destas eleições, muitíssimo relevante. Como se explica no Podcast de Gideon Rachman, colunista de assuntos internacionais do Financial Times, numa conversa com Ivo Daalder, ex-embaixador na NATO, Trump tem um perfil fascizante. Este não é o Trump de 2016. Está lá o mesmo narcisismo doentio, exigindo a total lealdade à sua pessoa. Mas o partido republicano já não está lá. Quem venceu as eleições foi a MAGA (Make America Great Again). Na última convenção republicana, não havia um ex-presidente, um vice-presidente ou alguém que tenha concorrido a esses cargos. À volta de um Trump, que já não será apanhado impreparado pela vitória, está gente mais fanática do que ele.
Donald Trump define-se pelos seus inimigos externos e internos. Os externos são os imigrantes que invadem o país e, expressão com sonoridade sinistra, “envenenam o sangue” dos EUA. Os internos são os opositores políticos. Não hesitará em usar o Estado para a sua agenda de vingança. O novo Presidente Trump terá o poder da inimputabilidade dado pelo Supremo, que mudou, com esta decisão, o regime democrático nos Estados Unidos. As implicações desta vitória para todo o mundo serão brutais e a elas dedicaremos análises dramáticas nas próximas semanas. Por agora, os americanos voltaram a pôr um autoritário, hoje mais perigoso do que em 2016, no poder. E fizeram-no pela razão mais habitual que a política conhece: o seu bolso não gostou dos últimos quatro anos. Ser contra Trump não chegou.»
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