Moro há cerca de 40 anos quase dentro do Estádio do Benfica, sempre suportei com bonomia os inconvenientes, respirei a poeira da demolição das velhinhas bancadas, sofri com a construção da nova catedral, gosto que o clube ganhe, ainda bem que é campeão este ano. Mas ainda não me saiu da cabeça o que se passou no Domingo, as horas e horas de invasão da cidade, as inacreditáveis reportagens, em vários dias, com que as televisões nos massacraram mostrando imagens de gentes tresloucadas, com ar de multimilionários a quem saiu o Euromilhões em dia de jackpot.
Há quem tenha falado de simples catarse em tempos de crise (do clube e do país), mas não vou por aí. O que mais me impressionou foi o facto de aquela enorme multidão ser mobilizável por motivações puramente tribais e ficar maioritariamente passiva quando se trata dos problemas vitais que a afectam. Com se se tivesse interiorizado que, no futebol, há sempre uma hipótese de vitória quando, na vida, o nosso destino, o nosso fado, é inevitavelmente a derrota. Por isso são tão certeiros este excertos do texto de José Vítor Malheiros no Público de ontem:
«Há no fervor guerreiro dos adeptos dos clubes um aspecto puramente tribal, que há anos é objecto de estudos antropológicos e psicológicos. Não há no amor clubista nenhum valor substantivo, mas apenas uma adesão à camisola, à bandeira e ao grupo. O que é estranho é que a forma mais fácil de mobilizar multidões e de acirrar os seus ânimos seja através de um ritual tribal e não através de valores substantivos, de ideias ou de projectos que tenham um real impacto na vida dessas próprias pessoas.
Ontem, ao ouvir as buzinadelas, pensava em quantos adeptos deste ou de outro clube, loucos de alegria pelo resultado de um jogo que em nada modificaria a sua vida, estariam dispostos a sair à rua para defender o aumento do salário mínimo, o aumento das pensões, o fim das propinas ou o pleno emprego. Quantas dessas pessoas seriam capazes de vir para as ruas exigir o fim da pobreza? Quantas dessas pessoas viriam para a rua indignadas pelos milhares de crianças que passam fome? Quantas dessas pessoas viriam para a rua exigir um combate eficaz à corrupção e uma justiça igual para todos? Quantas viriam defender uma escola pública de qualidade? Quantas destas pessoas virão para a rua no 25 de Abril gritar que não esquecemos a liberdade? Quantas dessas pessoas irão votar nas eleições europeias? Quantas irão votar nas legislativas? E quantas irão votar nos mesmos que hoje os condenam a eles à pobreza e os seus filhos à ignorância? Para que lhes serve este feroz orgulho de grupo e esta embriguez selvagem da vitória se, nos momentos que importam realmente, irão baixar o pescoço onde se irá pousar a canga?» (Os realces são meus.)
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