6.4.24

As guerras culturais são um alimento da direita radical

 


«A primeira medida do Governo Montenegro foi mudar o símbolo da República que tinha sido feito por Eduardo Aires para o Governo Costa, por um anterior da “República Portuguesa” com as peças todas, a esfera armilar, os castelos, as quinas, etc.. A claque comunicacional mais inteligente do Governo veio com todo o seu afã dizer que nada disto “era importante” e que se estava a discutir “irrelevâncias” em vez das “coisas importantes”. Ou seja, queriam matar o assunto, o mais depressa possível, para começarem a fazer loas ao Governo.

Mas a decisão é mais importante do que possa parecer, para que seja conveniente minimizar. Ao escolher fazer isto em primeiro lugar, o Governo quis dar um sinal, um sinal de ruptura, um sinal ao Chega, um sinal sobre o local onde se quer colocar. E sinais e símbolos são muito mais eficazes e empáticos do que medidas governamentais, para dizer ao que se vem ou para onde se vai.

Esse sinal é um elemento de algo que a direita radical tem usado com eficácia contra o centro e a esquerda, uma “guerra cultural”. A direita portuguesa que vive muito da ignorância, e não tem espessura intelectual e cultural, aliás como muita da esquerda, precisa destes sinais para forjar uma identidade de combate, que tem um efeito de radicalização, arregimentação e distracção. Estas três palavras – radicalização, arregimentação e distracção – vão ser a chave de muita coisa. A autodesignação de “governo de combate” tem muito a ver com este programa de acção.

O peso da ignorância é muito grande nesta discussão, em que é interessante ver monárquicos (há na AD, não?), reaccionários, nacionalistas, saudosistas da fé e do império terçarem armas pela bandeira jacobina que desde a República é a portuguesa. Eu vivo bem com a nossa bandeira (e o hino também), não participo e sou crítico de qualquer revisão do passado “fracturante”, sei bem o que significa tudo o que está na bandeira, mas … se, num acto governamental como este, se faz vir ao de cima o que lá está para ir para a “guerra”, então vamos para a guerra. Não há para mim nenhum problema em aceitar a nossa bandeira verde-rubra com a tralha histórica no centro (e escolhi a palavra “tralha” para a guerra…), nem a interpretação legítima do Eduardo Aires que mantém a identidade nacional, reduzindo essa parte da bandeira a uma cor. Mas, quando se pretende colocar uma contra a outra, eu tenho de falar da tralha central. E não me esqueço da hipocrisia dos patriotas do futebol, única altura em que os portugueses andam de bandeirinha ao pescoço, mesmo que tenha pagodes em vez dos castelos.

Eu não me excito com o combate da nossa esquerda “fracturante”, que acho muitas vezes espelhar com o da direita radical, que quer eliminar fatias importantes da história portuguesa à luz das “guerras culturais” actuais. Sim, a nossa bandeira remete para a história dos “descobrimentos”, que foi uma aventura comercial, imperial e depois colonial e racista, e até antes disso para a chamada “reconquista”, que foi uma guerra de poder e território contra o islão combatente dos primeiros séculos da Hégira.

Está lá tudo na bandeira, porque a bandeira é um condensado histórico, mas uma coisa é lá estar, outra coisa é querer moldar o presente a uma visão épica da história nacional, que incorpore na nossa identidade nacional o império e a colonização, logo o olhar para os estrangeiros como os “outros”, e logo uma história impoluta feita de “descobrimentos” assépticos, motivados apenas pela curiosidade e pelo interesse científico, a “dar novos mundos ao mundo” sem mortos, violências e opressão racista. Aí os nossos novos nacionalistas da bandeirinha deviam ler mais Fernão Mendes Pinto e a História Trágico-Marítima, mas as modernices curriculares deixaram isso para trás.

O Chega, que sabe muito bem aquilo em que o Governo se meteu, quer mais, e o mais é o corolário natural do sinal primeiro do Governo: quer que nas escolas se ensine a vulgata do nacionalismo na versão Estado Novo e, valha a verdade, da I República. Como nos EUA, os “trumpistas” querem apagar a escravatura, interpretar a guerra civil como uma luta pelos “direitos dos estados”, e querer, em nome da luta contra o “wokismo”, considerar que são os brancos a identidade da América e retomar a bandeira da Confederação.

Eu considero-me um patriota, à luz de um dos grandes momentos do patriotismo nacional que é a fala que Camões coloca na voz forte do Velho do Restelo, e sinto-me “português” na minha língua, nos meus poemas e romances na grande tradição cultural portuguesa, nas paisagens da minha terra, e nos bons e maus momentos da minha história. Eu sei que nem tudo é bom e exemplar, mas foi o que foi no tempo que foi. De todo, o que não preciso é de colar o meu patriotismo à esfera armilar, nem às quinas, nem aos castelos, nem aos pagodes e bater no peito a gritar Portugal.»

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