4.4.24

A arrogância não é exclusiva das maiorias

 

Jaime Silva

«1. O primeiro-ministro não parece ter aprendido grande coisa com a eleição do presidente da Assembleia da República, na semana passada. Não percebeu que governar com o apoio de apenas um terço dos deputados não é a mesma coisa que governar com 40% ou com uma maioria. Não percebeu que para governar vai ter de ceder ou prescindir de parte do seu poder, como cedeu e prescindiu por estes dias quando concordou que o PS elegesse um presidente da AR para uma presumível segunda metade da legislatura. Não percebeu que o seu discurso de tomada de posse, com tantas certezas, tantas exigências e tanto desdém pelos seus potenciais interlocutores só podia ser interpretado de duas maneiras: como um sinal de arrogância, ou como um gesto de provocação.

O sistema político e partidário vive um tempo novo para o qual nem há muita reflexão nem grande experiência, o que propicia erros e incompreensões. A racionalidade nas escolhas é mais frágil. A intransigência mais perigosa. As certezas menos plausíveis. A menos que o elefante no hemiciclo, o Chega, seja convidado a participar no poder, a governabilidade só será possível através de um bloco central informal, ora aberto ao compromisso, ora irredutível na defesa que cada parte fizer dos valores que partilhou com o eleitorado. Não estamos em guerra para que haja necessidade de uniões sagradas, mas não podemos estar em paz e sossego quando a ingovernabilidade ameaça o país.

O contexto implica uma revisão dos códigos e dos discursos na relação entre o poder e oposição. Dizer, como Pedro Nuno Santos disse, que chumbará um orçamento sem fazer a mínima ideia do que vai ser o orçamento, é entrar num niilismo que leva à degradação da confiança dos cidadãos na política – nesta quarta-feira, foi mais cauteloso no que disse sobre o futuro. Ao dizer que o PS está condenado a ser “oposição democrática” ou “bloqueio democrático”, Luís Montenegro segue os mesmos propósitos. Ambos querem encostar os seus adversários políticos à parede. Exibem músculo, tentam revelar convicção e seguem a tradição do debate zelosamente codificada pelo jornalismo político: o diálogo é testemunho de fraqueza e o compromisso ausência de programa.

Como se sabe que nem um nem outro são estúpidos ou suicidas, pode-se prever que haverá entendimento depois do azedume, como aconteceu com a escolha do presidente da AR. Mas também se sabe que cada palavra, cada aviso e a cada ameaça feita agora deixa marcas para o futuro. Por isso, o discurso de Luís Montenegro foi perigoso e desnecessário. Ganhou pela ousadia e a ambição de querer mudar e transformar, perdeu por basear esses desígnios na miragem de um Governo forte e de uma oposição fraca que a realidade do parlamento contesta.

Se, como o próprio pediu, os tempos exigem “humildade”, não pode pretender ser um primeiro-ministro plenipotenciário. Em democracia, ganha-se e perde-se por um voto, mas a expressão da vontade soberana do povo manifestada em eleições pode ser clara e inequívoca ou, como é o caso, tímida e relativa. Uma “vitória mínima”, como diz Marcelo, implica uma margem de manobra mínima para governar. Dizer com tanta assertividade que o programa da AD em matérias fracturantes como a baixa de IRC de 21 para 15% é para cumprir implica uma vontade ou um desejo cuja concretização não depende da AD ou de Montenegro. Implica, sim, um voto favorável do Chega ou obriga o PS a desdizer-se, a engolir sapos e a hipotecar a sua própria credibilidade. O PS, obviamente, não o fará, até por humildade.

Acreditar que, por viabilizar o Programa do Governo, o PS se deve comprometer a viabilizar a governação, destapa uma artimanha. Uma espécie de coacção, cristalizada na teoria dos cheques em branco ou na dicotomia oposição/bloqueio, como se o exercício legítimo e responsável da oposição não pudesse (e devesse) contemplar o bloqueio. Acreditar que o PS estará disposto a engolir políticas que o seu ideário contesta e o seu programa recusa em nome da “transformação” que a AD propõe pode ser do domínio da fé, não do bom senso ou da razão. Se, como sugere Montenegro, o PS for o parceiro preferido para viabilizar a governação, tem de respeitar as suas “linhas vermelhas”. Aquelas em que uma abstenção não basta, em que é forçoso votar contra.

Se o Governo quer envolver com sinceridade o PS numa relação construtiva, tem de conceder-lhe autonomia estratégica. Impondo-lhe regras, estabelecendo-lhe os princípios de conduta ou prescrevendo-lhe uma moral política baseada nas suas próprias interpretações e interesses, Montenegro não está a ser “humilde”, nem aberto ao compromisso. Não se negoceia cerceando a liberdade de os outros escolherem os termos, os limites ou o alcance da negociação. Ao transformar o discurso de investidura numa exposição do programa de Governo que mantém ipsis verbis o contrato apresentado pela AD aos eleitores, Luís Montenegro pensa em si, ignorando os outros. Ou muda, ou acaba nos braços do Chega, ou cai mais tarde ou mais cedo.

2. Haverá quem considere que, depois de indigitado, Montenegro tem o dever de ser ambicioso, de fazer prova dos caminhos que propôs para “transformar o país”. Pode-se até aceitar que o pior que o primeiro-ministro podia fazer era estrear-se numa pose titubeante ou céptica, a atitude que Marcelo Rebelo de Sousa parece preferir, como ficou claro no seu discurso. Aceitar estas leituras, porém, é insistir num paradigma da política que hoje não existe. Sobreviver numa ecologia difícil é a primeira missão do Governo. O que não se consegue irritando os predadores com poder para determinar o destino da espécie.

Montenegro conseguiu nomear um Governo com uma qualidade global muito acima das expectativas e parece apostar numa estratégia de combate político contra o tempo. Falou, e bem, sobre desafios estruturais em áreas como a água ou a demografia. Começou a seduzir o eleitorado do Chega com acções contra a corrupção ou nas políticas de imigração. Prometeu menos impostos, mais salários, mais serviços públicos e por aí adiante. Tudo isto seria legítimo de o tivesse feito com a preocupação de manter uma relação aberta e equilibrada com os socialistas.

Fez o contrário: tratou o PS como um apêndice, uma entidade derrotada que tem de se sujeitar à submissão. Legitimou o discurso duro e intransigente de Pedro Nuno Santos. Mais do que incentivar uma clivagem, Luís Montenegro fomentou a hostilidade. Se valoriza mesmo a “humildade”, deve começar por usá-la no seu próprio caminho.»

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