31.12.24

Cinco memórias do ano que mudou Portugal

 


«Cara leitora, caro leitor:

Isto não é bem um balanço do ano, mas as cinco memórias que mais me ocorrem quando penso neste ano político, que vai marcar o próximo, sem dúvida.

1 – A direita em força no Parlamento

A vitória da AD nas eleições de Março não foi o acontecimento do ano. Afinal, Luís Montenegro tornou-se primeiro-ministro por ter conseguido eleger mais dois deputados do que o PS. Uma vitória pessoal sem dúvida, quando já ninguém acreditava que, caso a legislatura não tivesse sido interrompida, Montenegro chegasse ao Governo. A demissão de António Costa e a decisão de Marcelo Rebelo de Sousa de convocar eleições antecipadas "salvaram" Montenegro de uma revolta interna no PSD, que aconteceria se o partido perdesse – como veio a perder – as europeias de 2024.

A memória política que marcou 2024 e vai marcar os próximos tempos foi a eleição de 50 deputados do Chega. Aquilo a que Portugal sempre tinha sido poupado – uma direita populista radical forte – consumou-se. Paulo Portas costumava justificar os seus discursos mais extremistas quando era líder do CDS (sim, também contra a imigração) com o facto de estar a lutar para que não viesse a existir nenhum partido mais à direita do que o CDS. Era a frase: "À direita do CDS, só a parede". Enquanto o CDS se aguenta no Governo e no Parlamento por misericórdia do PSD, a direita radical, que Portas jurava que iria travar, instalou-se.

2 – A contaminação do PSD pelo Chega

Luís Montenegro quis libertar-se das memórias da troika e abjurar o seu antecessor, Pedro Passos Coelho. Tentou a reconciliação com os pensionistas. Nas legislativas, "jogou" ao centro. Quando chegou ao Governo, começou a resolver aquilo que António Costa nunca quis fazer – a resolução dos problemas das carreiras dos professores, polícias e outras da função pública.

Para captar o centro disse, finalmente, "não é não" a uma coligação com o Chega. Montenegro tinha sido sempre dúbio a este respeito – tal como, antes dele, Rui Rio – e até tinha ido dar palmadas nas costas de José Manuel Bolieiro (o presidente do Governo Regional dos Açores que tinha chegado ao cargo através de uma coligação com o Chega), durante a campanha interna contra Jorge Moreira da Silva. O actual subsecretário-geral das Nações Unidas manifestou-se contra o acordo dos Açores e perdeu a disputa interna do PSD contra Luís Montenegro, que apoiou Bolieiro.

Mas o "não é não" veio mudar o cenário. A recusa do acordo com o Chega passou a ser a palavra de ordem, libertando o eleitorado que abjurava o Chega para votar AD. A questão é que, apesar das medidas de reconciliação com a função pública e os pensionistas, nunca o PSD teve um discurso securitário e anti-imigração como este ano. A lei que veta o acesso de estrangeiros ao Serviço Nacional de Saúde é talvez o exemplo mais grave dessa cedência à direita populista. Mas, no discurso do congresso do PSD, Luís Montenegro já tinha dado o sinal de qual era o seu rumo: comprar e pôr em acção a agenda do Chega.

Na segurança, Luís Montenegro vive uma contradição impossível: às segundas, quartas e domingos, Portugal "é um dos países mais seguros do mundo" – como disse na mensagem de Natal –, nos outros dias é preciso dar "visibilidade" a "operações especiais" como a recente no Martim Moniz, em Lisboa, para combater a insegurança, ou a "percepção" de insegurança. Querer recuperar o eleitorado que votou Chega à custa de prejudicar a economia – que precisa de imigrantes e para a qual o facto de Portugal ser um país seguro é um activo – é absolutamente perverso. Mas contribuir para a discriminação dos imigrantes com os discursos e o elogio à "visibilidade" das operações especiais do tipo do Martim Moniz é imoral.

3 – O PS a viabilizar o Orçamento "da direita"

Pedro Nuno Santos tornou-se líder do PS, cumprindo um objectivo que tinha desde a faculdade. Mas os timings não se escolhem. Foi para eleições com a herança do costismo, com o desgaste de oito anos de PS no poder. Em toda a campanha percebeu-se que estava hirto, como se não se sentisse à vontade no papel. Afinal, o que ia a votos eram Costa e Pedro Nuno, e o novo secretário-geral teria que encarnar uma personagem bipolar. Não foi famoso.

Mas foi o drama do Orçamento aquilo que marcou o ano dos socialistas. Pedro Nuno Santos, não é segredo para ninguém, queria votar contra. Depois ziguezagueou: admitiu negociar e o Governo não ligou à disponibilidade durante muito tempo. A verdade é que o partido não queria o voto contra, apesar de ter votado no candidato a secretário-geral que sempre defendeu votos contra "orçamentos da direita". Em ano de autárquicas, o "aparelho" disse "não" à possibilidade de novas eleições. O grupo parlamentar também era maioritariamente contra o chumbo do Orçamento. As cedências do primeiro-ministro, nomeadamente no IRS Jovem, tornaram mais difícil o voto contra. Mesmo assim, o facto de Montenegro só ter aceitado deixar cair parcialmente a baixa do IRC fez Pedro Nuno recusar o acordo, mas dispor-se à abstenção. No fim, ainda foi o PS a viabilizar até a baixa do IRC. Não foi um processo feliz.

Enquanto isto, o homem com mais sorte de Portugal – António Costa – passou por momentos terríveis depois do famoso parágrafo da PGR em Novembro de 2023 e das buscas em São Bento, com a descoberta de dinheiro na sala do seu chefe de gabinete. Mas, sendo o homem com mais sorte do país, tudo acabou em bem: acabou de tomar posse como presidente do Conselho Europeu, o cargo que há muito desejava e que parecia quase impossível de alcançar depois de Marcelo ter garantido que convocaria eleições se Costa quisesse ir para a Europa. Tudo está bem quando acaba em bem.

4 – A geringonça rebentou com o Bloco de Esquerda e o PCP?

Nas legislativas, o BE conseguiu 4,36% dos votos e elegeu cinco deputados e o PCP apenas 3,17%, com quatro deputados eleitos. Em 2015, antes dos acordos com o PS, o Bloco de Esquerda tinha conseguido 10,19%, mais do dobro. Sentaram-se no parlamento 19 deputados bloquistas. Em 2015, também PCP obteve mais do dobro: 8,25%, com 17 deputados eleitos.

Foi a geringonça que reduziu a esquerda à esquerda do PS a mínimos? O voto de protesto foi para outras paragens? A posição sobre a Ucrânia fez com que algum eleitorado abandonasse o PCP? A verdade é que, depois da geringonça, nada foi como antes. Talvez isto explique que o PCP tenha recusado a coligação com o PS em Lisboa e o Bloco já tenha anunciado que vai apresentar um candidato (ainda que não tenha recusado a coligação).

5 – O ano mais duro para Marcelo

Marcelo Rebelo de Sousa foi obrigado a cortar relações com o filho por causa do "caso das gémeas", onde uma comissão parlamentar continua a averiguar qual foi a interferência da Presidência da República e do Governo no acesso ao Serviço Nacional de Saúde de duas meninas luso-brasileira. Só isto faria com que o ano do Presidente da República fosse profundamente infeliz.

Mas não foi só isso. Quando se pensa em qual será o legado de Marcelo Presidente, fora os afectos e a proximidade – que também é importante –, vê-se um chefe de Estado que assistiu, no seu mandato (e por sua decisão exclusiva) à entrada em força da direita populista no Parlamento português. E percebe-se que ainda não arranjou uma forma de lidar com o "rural" e "imprevisível" Montenegro, como o classificou num jantar com a imprensa estrangeira. Marcelo gosta de estar confortável, esteve assim quase toda a vida (excluindo os últimos tempos na liderança do PSD) e agora não está. Tem um ano para recuperar a sua ligação com o povo.

Tenha um excelente 2025 e até para a semana!»


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