«Se tivesse que escolher a palavra do ano, essa palavra seria “percepções”. No plural, em Portugal e na política. Contrariamente ao que é comum, a palavra é um pouco mais sofisticada, ou dito de outro modo, intelectual, do que é costume na linguagem muito pobre das redes sociais e na habitual desertificação do pensamento. No entanto, ela está conforme com um certo psicologismo vulgar que tem outras ramificações no discurso comum e que é muito bem retratado nos reality shows que se sucederam ao Big Brother, como a Casa dos Segredos. As conversas dos concorrentes e o comentário a essas conversas depois de cada “cena” por parte de um conjunto de homens e mulheres vindos do nosso pobre jetset, que aliás são completamente idênticos na cultura, vocabulário e “mundo”, deviam ser estudadas na academia como exemplo de como o país está mergulhado numa mistura de ficção emocional, coreografia afectiva e desertificação cultural, ou seja ignorância. É também por aqui que se chega às “percepções”, a uma identidade feita de sensações imediatas, de emoções sem pensamento, de ideias sobre a realidade feitas como se fossem “memes”, entre o engraçado e o convulsivo.
Era só uma questão de tempo até estas “percepções” chegarem ao Governo, cuja visão não é muito diferente das “influencers” e dos reality shows, a que se soma a competição política com o partido das “percepções” que é o Chega. É isto que vende o conselho profissional dos negociantes de “percepções”, ou seja das agências de comunicação.
Ao governar pelas “percepções” e não pela realidade, o Governo não faz outra coisa senão fortalecer as “percepções”, ou seja dar razão ao Chega. E como ninguém é mais eficaz nessa função do que o Chega, o cálculo oportunista não funciona, envenena o PSD sem tirar força ao Chega. Pelo tempo e o modo em que ocorreu, o espectáculo da Rua do Benformoso nada tem a ver com as rusgas anteriores em que a PSP usou do mesmo processo, que aliás é clássico em certas operações policiais. O modo foi o da “visibilidade”, presume-se que preparada pelo primeiro-ministro, que juntou dois dos temas fortes das “percepções”: a imigração e a criminalidade. O resultado foi acentuar a “percepção” de que existe uma correlação entre a criminalidade e a imigração. O tempo foi tudo isto ter acontecido quando há um partido poderoso – sim, o Chega é um partido poderoso – que aparece como proprietário destas “percepções”. Isso muda tudo, e não adianta os propagandistas do Governo virem com exemplos de rusgas semelhantes porque, tão simples como isso, não são semelhantes.
Voltando às “percepções”. Deve o Governo preocupar-se com as “percepções”? Certamente que sim, até porque estas “percepções” crescem por várias razões, a mais importante das quais é o crescimento do ressentimento social, cujas raízes têm muito a ver com o modo como na sociedade actual há uma desvalorização social, uma perda de dignidade, que começa no salário, na habitação, no emperrar do elevador social, a que se acrescenta a crise dos partidos do “arco da governação”. Por culpa deles, por culpa deles, por culpa deles, que continuam a cometer os mesmos erros, a promover no aparelho sem preocupação pela influência na sociedade, a permitir que gente corrupta ou gente indiferente à corrupção faça carreira. Depois, porque, desde os anos da troika, deu-se uma impregnação de meia dúzia de lugares comuns sobre a economia, o capitalismo, o papel do trabalho, que transformou partidos como o PSD e o PS em partidos cujos nomes não significam hoje quase nada.
E, por último, e muito mais importante do que se pensa, porque resulta de uma mistura do deslumbramento tecnológico com o degradar da circulação do saber – seja na comunicação social, seja no ensino, seja nos consumos de informação – e na redução do debate público à arregimentação e ao radicalismo das invectivas nas redes sociais, associado a muita preguiça socialmente instigada, que está a incrementar a ignorância agressiva. Nada é mais nocivo para a democracia do que os mecanismos dessa ignorância, que vive da falsidade das fake news e das teorias da conspiração, da redução da racionalidade à emotividade primária, e que gera o mundo das “percepções”.
Como é que se combate isto? Primeiro que tudo, combatendo, coisa que não há muita gente que faça com firmeza e fora da tendência espelhar para responder a invectivas com outras invectivas. Depois, percebendo que há muita asneira no mundo chamado woke que atinge também os fundamentos da democracia ao valorizar uma soma de identitarismos baseados no género, na orientação sexual, no policiamento da linguagem. Por fim, estudando, sim estudando, lendo mais Marx e Gramsci e olhando para o mundo dos telemóveis, das redes sociais, da sociabilidade pobre dos likes e perguntando-nos como é que meia dúzia de gente aos saltos no Tik-tok tem mais efeito numa escola do que professores e pais, muitas vezes iguais nos vícios que deviam combater. E por fim, lutar pela melhoria dos salários, por pôr mais dinheiro no bolso das pessoas, para que elas possam ser mais livres, ter maior sentimento de dignidade e ter meios para ultrapassar as “percepções” que as prendem mais do que libertam.»
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