«Sempre houve debates parlamentares mais ou menos acalorados em que alguns limites de civilidade foram ultrapassados. Sempre existiram apartes mais ou menos indecorosos nesses debates. Mas foram momentos excecionais, que resultaram do calor do confronto e que foram resolvidos, sem que isso afetasse o essencial da imagem da Assembleia da República.
As coisas mudaram com o Chega. Estamos perante um comportamento recorrente e premeditado de quem, não acreditado nas instituições democráticos, vê vantagem política em degradar a sua imagem. Porque é a degradação das instituições que permite propor a ordem salvífica e, chegado ao poder, é e a desinstitucionalização da política que permite impor a arbitrariedade. A informalidade com que Elon Musk aparece na Sala Oval não é uma questão de estilo. Corresponde ao programa político que permite a um milionário sem qualquer cargo no governo saltar sobre a lei para destruir as funções regulatórias do Estado por dentro. O abandalhamento é um instrumento de poder.
Se alguém tem dúvidas sobre a natureza estratégica da incivilidade do Chega, basta ouvir André Ventura, que defendeu que "o ambiente no parlamento é a expressão daquilo que os portugueses quiseram, é a fúria contra o sistema”. O Chega diz querer reproduzir nas instituições o clima social que diz existir no País, mas, na realidade, usa o parlamento para impor um determinado clima político e social ao país. Quer que o debate político baseado no insulto, na irracionalidade e na ausência de limites se espalhe no país a partir da autoridade institucional da Assembleia da República.
Esta forma de debater também funciona como intimidação. Não acontece apenas nas instituições do Estado. Repete-se nas televisões e nas redes, criando um clima pouco propício à participação cívica e política de cidadãos que se sintam desconfortáveis com o insulto e a difamação. Nivela a qualidade do debate (e, com ele, dos atores políticos) pelo Chega.
Os responsáveis pelos abusos dos deputados do Chega não são os próprios. Esses cumprem a sua função: desacreditar a democracia e as instituições. O responsável é o presidente da AR, que teve medo da impopularidade de impor limites.
José Pedro Aguiar-Branco tinha, perante o que aconteceu na legislatura anterior, o dever de, se não queria vir a limitar formalmente o espaço de manobra dos deputados, dar sinais de tolerância zero perante o abuso e o assédio. Fez exatamente o oposto. Pôs fim a qualquer freio, permitindo que os deputados do Chega, empoderados pelo crescimento eleitoral e a tolerância do novo presidente, testassem os limites.
O argumento do Presidente da Assembleia da República, usando quando houve a polémica da saudação nazi do deputado Miguel Arruda, é a negação da democracia liberal: “No próximo ato eleitoral, quem não se revir nos seus representantes deve penalizar, quem achar que deve continuar a ter o seu apoio deve reforçar ou votar naqueles que cumpriram o mandato tal como os portugueses acham e desejavam que fosse exercido". Ou seja, sendo eleitos, o único limite ao comportamento dos políticos é responder ao julgamento de quem lhes deu o voto.
Compreendo que Aguiar-Branco não tenha vontade de ser alvo da mesma onda de insultos, difamações e assédio que foram sofridos por Augusto Santos Silva e Ferro Rodrigues. Ainda mais difícil quando está num espaço político mais próximo do Chega e, por isso, mais sensível à sua pressão eleitoral. Mas o sinal que julga ter sido de liberdade foi de fraqueza. E o crescendo de insultos é inevitável sempre que o Chega, atravessado por escândalos judiciais e suspeitas de crime, precisa de lançar o fogo na pradaria.
A eleição de Aguiar-Branco resultou de um acordo com o PS depois do Chega lhe ter tirado o tapete. Isso deveria chegar para que o PSD aceitasse um pacto que impusesse regras perante todos os abusos a que assistimos na legislatura anterior.
Quanto mais funciona a autorregulação menos necessária é a regulação formal. Quando os próprios deputados, por formação cívica ou por temerem a punição dos eleitores, evitam um determinado tipo de comportamentos, cumprindo um conjunto de regras básicas não escritas, mais ligeiro pode ser o regulamento que limita a sua atividade. Quando as regras não escritas deixam de funcionar e a falta de educação até é premiada pelos eleitores, ele tem de ser mais apertado.
A Assembleia da República não tem de inventar a roda. Existem, por essa Europa fora, diversas formas de punição que, no essencial, não põem em causa a representação dos eleitores. Em casos de insulto, apelo à violência, difamação, tumulto no parlamento e outras perturbações do debate, é comum, em parlamentos como o alemão, o austríaco, o francês, o italiano, o britânico ou o europeu, para além de avisos e advertências, a suspensão dos trabalhos; a retirada a palavra ao deputado no momento ou em toda o debate ou sessão; exclusão de um deputado (não poderem estar na sala) até um mês (com perda de salário); exclusão de representação do parlamento em delegações externas; multas pecuniárias ou perda temporária de subsídio ou subvenção.
Perante a sucessão de espetáculos degradantes a que temos assistido, o regimento dos deputados tem de ser mais explicito nos limites e nas punições. É mais do que um imperativo interno ao funcionamento da Assembleia da República. É um imperativo democrático que transmite ao país uma ideia simples: na política, como na sociedade, há regras de convivência. A democracia é o espaço da liberdade e é o espaço dos seus limites. É nas ditaduras que reina a arbitrariedade onde o mais forte se consegue impor pelo medo.
Aguiar-Branco discorda. Acredita que o ideal é a pedagogia. Também acredito no poder pedagógico da experiência. Talvez sirva para o Presidente da Assembleia da República aprender como os inimigos da democracia se aproveitam da falta de coragem dos que a devem defender. Espero que aprenda depressa, que a democracia não aguenta muitas semanas como a última.»
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