«Esta é uma questão cada vez mais importante nos dias de hoje, em que as democracias conhecem uma crise profunda. Tem-se generalizado a utilização do termo “democracia liberal” para distinguir daquilo a que se chama “democracia iliberal”. Tenho a maior das dúvidas quanto a esta utilização, que tem o efeito perverso de permitir colocar sob o manto da “democracia” regimes que não são democracias. Das duas uma: ou há democracia ou não há, e há critérios para se saber a resposta.
Pode haver democracias em construção, democracias imperfeitas, democracias em crise, mas “democracias iliberais” não há. O corolário desta designação é a ideia de que aquilo que fundamentalmente caracteriza uma democracia são eleições, a expressão da vontade popular, o que não é verdade. Pode haver eleições livres e controladas, e existir legitimidade eleitoral, e não haver democracia, pela falta de outros elementos constitutivos do que é uma democracia, em particular dois: o primado da lei e o respeito pelos procedimentos que garantem os direitos, garantias e liberdades. Pode argumentar-se que, a partir da legitimidade eleitoral, em eleições uninominais ou parlamentares, um eleito ou eleitos legislem de forma a acabar com todos os procedimentos que vinham do passado e transformem a lei por forma a limitar direitos, liberdades e garantias, que é um pouco aquilo que fazem os candidatos a ditadores, nem que seja “por um dia”. Mas, como se passou com Hitler, isso acaba com a democracia desde o primeiro dia.
Ia escrever esta frase: “Pode parecer que é muito complicado, mas no essencial é simples”, mas na verdade não é simples. Ia escrever outra frase: “Toda a gente sabe quando está a perder liberdades”, mas também não é bem assim. Há alguma verdade em cada uma destas frases, que censurei a mim mesmo, mas há também muito que não corresponde à realidade, particularmente neste tempo de radicalização e polarização. Na verdade, a radicalização tem um forte efeito de tornar aparentemente aceitável muito do que está a pôr em causa as democracias, como sendo “natural”, particularmente porque vem dos “nossos” e atinge os “outros”. Muitas vezes, esta polarização tem como consequência que se sinta ou não a perda de liberdade conforme a “ecologia” em que se está, ou bem ou mal.
As palavras de J.D. Vance e Elon Musk sobre a falta de liberdade de expressão na Europa parecem-nos absurdas vindas de um país que, sob o poder de Trump e dos republicanos MAGA, proíbe livros nas bibliotecas, despede funcionários pelo uso de uma só palavra que se tornou maldita, como “equidade”, e impede uma agência noticiosa de ter acesso às conferências na Casa Branca porque se recusa a chamar Golfo da América ao Golfo do México. Para eles, nada disso é censura, mas impedir frases contra os imigrantes e insultos racistas nas redes sociais é. Também é censura – e, como se sabe, eu sou firme partidário da definição americana para a liberdade de expressão da Primeira Emenda da Constituição, e sei que, na base dessa Emenda, o que disse Pedro Pinto do Chega sobre a morte de Odair e o elogio da polícia em matá-lo como exemplo para outros “criminosos”, ou a condenação de Mário Machado por um insulto degradante a senhoras da esquerda radical não mereciam a pena de prisão –, mas a última coisa que aceito são as lições destes sicofantas de Trump.
Uma coisa são os impulsos censórios europeus do “politicamente correcto”, outra a dimensão e o valor da absurda comparação e da conclusão de Vance/Musk, que nada tem a ver com defesa da liberdade de expressão e é um ataque directo às democracias europeias, vindo de quem apoia a extrema-direita europeia e as suas pulsões autoritárias. O que eles dizem é que o discurso radical da extrema-direita é que deve servir para medir haver ou não liberdade de expressão.
Dei o exemplo da liberdade de expressão, mas podia dar muitos outros em que a crise da democracia é obviamente desejada por aqueles que a estão a matar, mas invisível para os que estão do seu lado. Estão a vingar-se e gostam. Por isso, a radicalização e a polarização fragilizam a resistência e o combate pela democracia.
Os EUA não são uma “democracia iliberal”, mas uma democracia em profunda crise que se transformará numa autocracia, nome benévolo para a ditadura, no momento em que Trump não aceite uma decisão judicial que o impeça, a ele e a Musk, de cometer ilegalidades, umas atrás das outras. Essa é a linha vermelha em que ele já está sentado, e que está ela própria já muito fragilizada pela politização do poder judicial, a começar pelo Supremo Tribunal, cujos juízes escolhidos por Trump mentiram nas audiências prévias dizendo que não iriam fazer aquilo que fizeram, por exemplo com o aborto. A degradação do poder judicial nos EUA significa que o último travão à ditadura está muito débil e, se não houver nada que ponha em causa Trump e os seus, então teremos a maior crise da democracia desde os anos 30 do século XX.
A razão é simples, o mal infecta, e infecta muito eficazmente.»
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