19.2.25

Vamos ignorar que os EUA passaram para o outro lado?

 


«Em 1938, o primeiro-ministro britânico, Neville Chamberlain, voou até Munique para “oferecer” a Hitler o País dos Sudetas e, com ele, as defesas fronteiriças que retiraram qualquer possibilidade da Checoslováquia se defender da ameaça militar alemã. 87 anos depois, a cidade que é símbolo da capitulação das democracias europeias ouviu o vice-presidente norte-americano exigir a capitulação da Europa aos valores de Trump e da extrema-direita europeia. Não foi um momento menos inspirado. Haverá um antes e um depois desta declaração de “guerra” política.

Os EUA deixaram de ser um aliado. São, neste momento, na melhor das hipóteses, um parceiro hostil. E Trump não é um intervalo. O interregno foi Biden. Continuar a olhar para os EUA com o quadro de análise das últimas décadas seria um risco para a segurança da Europa.

Em menos de vinte minutos, J.D. Vance acusou a Europa de combater a liberdade de expressão por ter “medo do seu próprio povo”, indo contra “alguns dos seus valores fundamentais, partilhados pelos EUA”. Discursando numa cidade que está a pouco mais de mil quilómetros da Ucrânia, passou ao lado da ameaça russa ou da China, mas dissertou sobre a ameaça que representam os os “inimigos internos” da Europa que impedem partidos como a AfD de ascender ao poder. O cinismo do discurso, um dia depois de garantir, em Dachau, que “nunca mais” viveremos algo assim, foi sublinhado pelo chanceler alemão: “um compromisso pelo 'nunca mais' não é conciliável com o apoio à AfD”.

Mas talvez o mais irónico deste episódio tenha sido ouvir o vice de quem tentou um golpe para impedir a validação de um resultado eleitoral vir dar lições de respeito por processos eleitorais aos europeus. Vai para lá da total e absoluta falta de vergonha na cara.

Vance não foi a Munique como um atirador solitário. Não só Trump foi lesto a indicar que se tinha tratado de um discurso “brilhante”, como o contraste com o tratamento concedido a Putin é evidente. Nada como usar as palavras do próprio Trump, na rede social de que é proprietário, para descrever a sua longa chamada telefónica com Putin: “Conversámos sobre as forças das nossas respectivas nações e o grande benefício de trabalharmos juntos. (…) O Presidente Putin até usou o meu lema de campanha, 'senso comum’. Ambos acreditamos nisso. Concordámos em trabalhar juntos, de forma muito próxima, incluindo visitas às nações um do outro”. Nos antípodas do discurso de Vance, em Munique, sobre os seus supostos aliados.

Um dia antes, o presidente garantia que “há muitos anos que o Canadá é abusivo com os Estados Unidos.” É evidente a reverência para com as autocracias – mesmo a China tem sido menos penalizada com as ameaças de tarifas que a Europa e Canadá – e a tentativa de destabilização das principais democracias.

O resultado da conversa de Donald Trump com Vladimir Putin foi a calendarização rápida do processo de negociações entre os EUA e a Rússia, da qual a Ucrânia irá sendo informada. Tal como em Munique, em 1938, o país ameaçado fica de fora das salas onde se decidide o seu futuro. A Ucrânia e toda a Europa. O secretário da Defesa dos EUA, Pete Hegseth,indicou aos seus homólogos europeus que os EUA já não consideram a segurança da Europa uma prioridade. Mas a defesa da Europa e da Ucrânia terá de ser garantida pelos europeus nos moldes do acordo promovido pelos EUA com a Rússia sem a Europa e a Ucrânia.

Independentemente de a responsabilidade ser russa, a guerra da Ucrânia resultou de um caldo também cozinhado pelos EUA, desde 2014. E até são os EUA a assumir, com esta negociação, de que a viam como uma guerra por procuração, sendo os interesses da Ucrânia secundários. Apesar da ausência na negociação (receberam um questionário), vários líderes europeus já vieram dizer que enviarão tropas para a Ucrânia. Estamos aqui para os servir.

Trump limita-se a cumprir o que prometeu: nada fazer para defender um país europeu e a desvalorização sistemática da ameaça de Putin.

A Europa terá de tratar da sua defesa. Mas não tem de gastar 5% do PIB, assim como não gastam os EUA, presentes em todo o mundo, e a Rússia não os gastava antes da guerra. A pressão de Trump para os europeus saltarem rapidamente para estes valores tem um único objetivo, que nada tem a ver com a segurança da Europa: termos de nos fornecer na indústria norte-americana.

Como lembra o Bruno Cardoso Reis, Mark Ruthe, porta-voz obediente na defesa dos 5% do PIB em defesa, foi, enquanto primeiro-ministro dos Países Baixos, um dos mais vocais defensores dos cortes na despesa em defesa dos países intervencionados pela troika e na recusa sistemática da mutualização da dívida europeia, indispensável para este investimento. O secretário-geral da NATO não representa os interesses europeus. Representa os interesses do novo chefe.

A nova defesa da Europa dever ter três pressupostos. Primeiro, essa defesa deve fazer-se fora do quadro da NATO. Se os EUA se querem dedicar ao Pacífico, não precisam de nós para isso. Se o Presidente e o Vice-Presidente dos EUA desprezam a ameaça russa e consideram que os inimigos “internos” são os governos democráticos da Europa, não há interesses comuns. As prioridades dos EUA já não são as nossas.

Segundo, o investimento em defesa não pode implicar a destruição do Estado Social, que corresponderia a criar o caldo para entregar a Europa à extrema-direita e, no fim, perder na mesma. O que nos obriga é a pôr fim à corrida fiscal para o fundo, que livra grandes empresas e os mais ricos de todo o esforço fiscal. A solidariedade entre países mais ou menos expostos ao perigo russo pode seguir uma lógica diferente à que vimos quando o Norte culpou “linha da frente” pela crise financeira. Mas exigem-se cautelas que então foram ignoradas, não aprofundando a divergência entre economias.

Terceiro, construir uma política de defesa coordenada é ter uma aliança semelhante à que hoje existe na NATO, não é, nunca teve de ser, a construção de um exército comum. A reunião de ontem, em que participaram países escolhidos da UE, explica porque um exército comum é uma impossibilidade. Esta é e continuará a ser uma Europa de nações. Mesmo quando a União funciona, é porque as nações mais fortes impõem a sua vontade. Como devíamos ter aprendido com o euro. Nestas circunstâncias, fazem-se alianças, não se dão passos em falso.

Antes de decidirmos que nos queremos armar, temos de saber para quê, com quem e de quem nos queremos defender. Tratar da defesa da Europa em conjunto com quem lhe declara guerra política de forma tão clara é um suicídio. Não se percebe quem são os inimigos estando equivocado quanto aos aliados.»


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