«Ninguém sabe de quanto tempo disporá a Ucrânia até que a Rússia a engula por inteiro. Ninguém sabe se, em caso de ataque a um Estado-membro da NATO, os Estados Unidos intervirão em defesa do seu aliado. Estas são as duas grandes interrogações trazidas pela presidência Trump e suscitadas pelas palavras do vice-presidente Vance e do secretário Hegseth.
A exclusão da Europa das “negociações” impostas na Arábia Saudita serve um propósito: isolar a Ucrânia e fazê-la submeter-se às condições da paz determinadas por Putin e Trump, árbitros dos superiores interesses russos e americanos e ainda fazer “pagar” o apoio recebido nos anos Biden, facultando a empresas americanas o acesso aos recursos naturais da Ucrânia dilacerada, na parte que Putin não conseguiu abocanhar.
A Europa foi surpreendida pelo regresso à anarquia na ordem internacional, inaugurada por Putin e agora apadrinhada pelos Estados Unidos. Na ordem nova conta a força e a afirmação despudorada do interesse próprio, a correlação de forças é tudo, o direito nada.
Com umas forças armadas hiperdimensionadas e com uma economia subordinada ao esforço de guerra, a Rússia será grande beneficiária de qualquer trégua precária, que lhe dê o tempo de que precisa para acabar de vez com a Ucrânia, enquanto o Ocidente, cínico ou impotente, aguarda o regresso das “forças de paz” exclusivamente compostas por soldados europeus, provavelmente em caixas de pinho.
Quem só tem um martelo não pode senão pregar pregos e a Rússia é um martelo, um exército com um país acoplado, empobrecido, mas armado, que caminha para as consequências económicas da guerra ucraniana, que serão pesadas. A paz não serve a Putin que, com Lavrov, extrairá de Trump e dos outros cómicos o que bem lhe aprouver. A Europa, que pensa a 50 anos de distância, está a experimentar o diktat americano como em 1945, e sabe que, a prazo, o diktat será russo-americano, se não for exclusivamente russo, numa reorganização global das esferas de influência com a qual a América troque a Europa pela cumplicidade da Rússia noutras geografias.
A II Guerra Mundial foi vencida pela União Soviética, uma ditadura brutal, e pelos Estados Unidos, o arsenal da democracia. A ideia de que as democracias são pacíficas mas invencíveis é um puro mito. O eixo foi derrotado pela capacidade industrial americana e pela inesgotável capacidade de sacrifício do povo russo. A Inglaterra resistiu, graças a Churchill e ao canal da Mancha. Oitenta anos volvidos, a Europa, com o seu poderio económico equivalente a dez Rússias, sem o arsenal americano, vê-se devolvida à mundivisão anterior a Pearl Harbor, mais desarmada que nunca. Até ver, não conta para nada, como se de um protetorado se tratasse.
A Polónia, que vê a tragédia checoslovaca da crise dos sudetas a repetir-se no Donbas, sabe que as fronteiras são ficções sustentadas pela dissuasão, prontas a serem mercadejadas, em nome das minorias de conveniência, sejam elas germanófilas ou russófilas. A Polónia também conhece a ordem dos pratos no banquete das grandes potências. Habituada a não poder contar senão consigo própria, vai armar-se até aos dentes. A Alemanha fará igual, repetindo 1948, quando a necessidade ditou a sua entrada apressada no clube das democracias vencedoras.
O secretário da Defesa Hegseth comparou o art. 5º do tratado NATO ao seu artigo 3º, ou seja, equiparou os deveres de financiamento das forças armadas ao princípio de que um ataque a um membro constitui um ataque à aliança, baralhando propositadamente meios e fins. Postas assim as coisas, a NATO deixou de ser a garantia americana à Europa.
Na Europa central dorme-se mal porque o passado foi ontem e nem sequer passou. Por cá, como é próprio dos aposentados do palco da História, dormimos como justos.»
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