18.2.25

O Tio Sam não quer nada connosco

 


«Benjamin Netanyahu e Vladimir Putin serão recompensados pela espera. Os dois aliados de Donald Trump terão mais do que aquilo que alguma vez esperaram conseguir.

O Presidente dos EUA vai conceder a ambos, respectivamente, a anexação de Gaza e da Cisjordânia e de uma grande parte do território da Ucrânia. Quer num caso, quer no outro, estamos a falar de uma falsa paz.

Donald Trump vai sacrificar o direito dos palestinianos a um Estado, a usufruírem de quaisquer direitos cívicos, ferindo de morte qualquer noção de direito internacional.

E irá sacrificar a luta ucraniana pela defesa da sua integridade, impor uma capitulação e aumentar a vulnerabilidade europeia. Benjamin Netanyahu e Vladimir Putin, ambos acusados de crimes de guerra, estão caucionados pela Casa Branca e não há nada que os possa travar a partir daqui.

Os países que compõem a União Europeia têm todas as razões para se sentirem traídos, para recearem futuras investidas russas e para duvidar da sacrossanta aliança transatlântica que formatou as democracias mundiais do pós-guerra.

O que J.D. Vance, Pete Hegseth e Keith Kellogg vieram dizer a Munique e a Bruxelas foi que o Tio Sam não quer nada connosco, como já estava explicito no anúncio do negócio que Trump e Putin se preparam para firmar, sem a participação europeia, à custa da Ucrânia.

Os emissários de Donald Trump nutrem pelo bloco europeu o mesmo desdém que reservam aos democratas e a todos com os quais não concordam, olhando para os líderes europeus como emanações de uma cultura progressista que abominam. Nenhum deles tem legitimidade ou ética para dar lições de moral sobre democracia.

J.D. Vance está muito preocupado com as eleições presidenciais romenas, porque a anulação dos resultados impediu a vitória de um candidato com públicas e assumidas paixões pelo III Reich, e até está empenhado na vitória da AfD na Alemanha, e não há partido mais simpatizante do ideário nazi do que este. A internacional da extrema-direita vai dando passos firmes.

É de um cinismo insuportável criticar os países europeus por uma suposta limitação da liberdade de expressão, quando o que o vice-presidente dos EUA defende é que a mentira manipuladora e o discurso de ódio mais hediondo possam circular sem limites, quando a Casa Branca atribui lugares nas suas conferências de imprensa a podcasters, youtubers ou tiktokers que farão de Donald Trump um santo, quando a Associated Press é expulsa da Sala Oval por continuar a referir-se ao golfo do México como tal, e não como golfo da América, quando é sugerido o despedimento de jornalistas que assinam textos mais críticos ou quando palavras transgénero, diversidade, desinformação, activismo, racismo ou género são banidas dos documentos oficiais ou de instituições financiadas pelo Estado. Para acabar de vez com o escrutínio, os EUA de hoje vivem uma época de purga, de censura e, talvez ainda pior, de autocensura.

O que mais preocupa J.D. Vance e companhia são as regras e a regulação do mercado europeu, que pode refrear a crescente influência das empresas tecnológicas na criação de uma atmosfera tóxica, porque esta administração só aceita as suas próprias regras e não hesita, até, em colocar em causa a independência do poder judicial.

Neste quadro, a UE não pode responder à afronta com resignação. Diplomacia é outras das palavras que não fazem parte do actual vocabulário de Washington. Os países europeus têm de se responsabilizar pela sua própria segurança. Mas isso não quer dizer que tenham de seguir os mandamentos de Mark Rutte e comparem armas à indústria de armamento norte-americana, sem garantias de segurança comuns. Para que serve a NATO, se os EUA a encararem apenas com uma central de compras para benefício próprio.

A UE é um importante mercado, ainda é uma referência democrática e pode ser influente e eficaz, se actuar como um bloco coeso, como já o demonstrou no passado. A Europa não deve deixar de ser a Europa, deve resistir à chantagem, responder à humilhação e fortalecer a sua autonomia.

Tem contra si as divisões internas, uma série de émulos de Trump à espera de chegar ao poder, com a ajuda de Elon Musk e dos algoritmos dos super-ricos de Silicon Valley, falta de liderança e uma irrelevância política que tem de combater. A reunião desta segunda-feira, em Paris, com a presença do Reino Unido, pode ter sido o primeiro despertar.

Num mundo cada vez mais fragmentado, a UE está entalada entre duas ameaças, a do imperialismo russo e a do imperialismo norte-americano. O que separa os europeus das presidências da Rússia e dos EUA é ideológica. Neste momento, quando há muito mais a unir Washington e Moscovo do que a unir Washington e Bruxelas, ou a UE se fortalece ou desaparece.»


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