28.8.22

O coração e os seus equívocos

 


«É fácil de perceber o entusiasmo e a curiosidade populares com o coração de D. Pedro IV. Como é fácil de entender a rapidez com que, em plena campanha eleitoral, Jair Bolsonaro se apropriou das comemorações do bicentenário da independência do Brasil e usou a trasladação ao serviço da sua própria retórica. Os erros históricos são o que são. A tentação de capitalizar politicamente todas as oportunidades, quando se avizinha uma eleição por agora dada como perdida, é humana e sem surpresas no atual chefe do Estado brasileiro.

A oposição não perdeu tempo para questionar as cerimónias. As dúvidas levantadas quanto aos gastos públicos serão as de mais simples resposta, já que as curtas palavras de Bolsonaro levantam questões mais sérias. Três frases apenas sobre as ligações entre os dois países e, a fechar, "Deus, pátria, família". Pelo meio, no dito e sobretudo no subentendido, um mar de desencontros e debates sobre o colonialismo, o retrocesso do Brasil e a visão que o presidente e candidato tem do país e da sua história.

A expressão "Deus, pátria, liberdade, família" foi proferida por Afonso Pena, escritor e político brasileiro, mas inspirou Oliveira Salazar nas principais linhas da governação. O lema serviu também o movimento de extrema-direita Ação Integralista Brasileira e tem sido por diversas vezes utilizado por Bolsonaro. Inclusivamente ao lado do presidente húngaro, cujo posicionamento é por demais conhecido.

A história pode ser torcida em muitas direções, consoante os propósitos que serve. Mas não se trata apenas de política ou do contexto eleitoral vivido no Brasil. As reações de muitos historiadores brasileiros trazem à tona problemas mal resolvidos entre os dois "países irmãos" e os equívocos que ainda povoam as relações sociais, intensificadas por sucessivas vagas migratórias.

A votação de outubro conta muito para o futuro do Brasil e do seu espaço de liberdade. Mas há, muito além das escolhas democráticas, tensões inequívocas com o que fomos e com o que fazemos do nosso passado. Com excessos, porque é perigoso retirar acontecimentos do seu momento concreto e lê-los com a lente da atualidade. Mas também com muitos detonadores de intolerância, xenofobia e discriminação que não podem deixar de ser tidos em conta, mesmo quando se parece abusar da crítica histórica. E esses detonadores interessam-nos e devem preocupar-nos a todos, de um lado ou de outro do Atlântico.»

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