28.9.23

“Torcato, o bafiento beato”, um poema de Ricardo Araújo Pereira

 


«Mais uma vez, um grupo de fanáticos procurou impedir a venda de um livro destinado a crianças cuja leitura não é obrigatória. Dou por mim a ter saudades dos censores de antanho, que se dedicavam a censurar livros com um pouco mais de arcaboiço: “Novas Cartas Portuguesas”, “Os Versículos Satânicos”, “Lolita”. Coisas dessas. Era execrável na mesma, mas ao menos os censores andavam a ler livros para a sua idade. Já não era mau. Neste momento, a literatura mais polémica e incómoda é a infanto-juvenil. Os fanáticos desta semana foram exercer a sua censura para o lançamento do livro “No Meu Bairro”, da autora Lúcia Vicente e do ilustrador Tiago M., que reúne 12 histórias em verso. Por exemplo, ‘Magalhães, o menino que tinha duas mães’, ou ‘Beatriz, a cigana feliz’. Alguém leu as histórias aos censores, provavelmente ao deitar, e eles não gostaram nada. Por isso, apresentaram-se no lançamento com um megafone. Ou porque pensavam que ia estar um mar de gente na apresentação de “No Meu Bairro”, e precisavam de um megafone para que a multidão conseguisse ouvi-los, ou porque sabiam que ia estar apenas meia dúzia de pessoas mas tinham a consciência de que os seus argumentos são tão frágeis que só se conseguem impor se forem proferidos aos gritos. É difícil saber.

Sem querer culpar as vítimas, parece-me evidente que Lúcia Vicente e Tiago M. têm responsabilidades neste protesto. Quiseram escrever um livro norteado pelos valores da diversidade e da inclusão, mas falharam clamorosamente. Inventaram um bairro com vários tipos de criança, mas deixaram ostensivamente de fora os meninos que invadiram o lançamento. Não tinha custado nada escrever uma 13ª história em verso, chamada ‘Torcato, o bafiento beato’, para que eles se sentissem representados. Deixo aqui a história, com o objectivo de enriquecer futuras edições do livro.

“Era uma vez o Torcato
o bafiento beato.
Ele era um menino cristão
como aqueles pais de Famalicão. 
Dizia: ‘Cada filho deve ser educado
sem a intervenção do Estado.
Os pais decidem livremente
que educação dar a um descendente.’
Mas um dia o Torcato
leu um livro em que um gaiato,
tinha uma família horrorosa,
indecente, pecaminosa:
duas mães em vez de uma.
Bem pior que ter nenhuma.
Coitadinho do gaiato,
está melhor no orfanato.
E então o Torcato
foi fazer um espalhafato
contra o livro infantil.
Afinal ele é hostil
à noção de liberdade.
Educar os filhos há-de
obedecer a uma doutrina
de lógica cristalina:
um livro só é sensato
se aprovado pelo Torcato.”

Só falta o Tiago M. desenhar o Torcato com os calções castanhos, a camisa verde, o bivaque castanho escuro e o cinto com a letra S, e a segunda edição está pronta para ir para a gráfica.»

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